Por
Eduardo Hoornaert.
A
prosa epistolar de Helder Camara está invariavelmente impregnada de entusiasmo,
o que se compreende, pois ela serve basicamente para animar a Família
Messejanense, ou seja, o grupo feminino & companhia que o acompanha em
pensamento, sonho e espiritualidade. Ela contrasta com a poesia helderiana,
como já demonstrei aqui em diversos textos de meu blog. Questionadora,
expressando até desânimo, sentimento de abandono e frustração, essa poesia
revela um Helder crítico, que não teme emitir opiniões um tanto inconvenientes
para um bispo.
O
que nos interessa aqui é o seguinte: o contraste entre prosa entusiasta e
poesia questionadora nos permite penetrar mais fundo na personalidade e nos
posicionamentos de um dos mais importantes expoentes do pensamento brasileiro
nos anos 1960-1990. Neste texto me restrinjo a apresentar doze poemas que
aparecem nas Cartas Circulares de 13-14 de março 1971 e de 16-17 do mesmo mês
(respectivamente pp. 127-130 e 136-138 do Volume V, Tomo III da Edição Cepe,
Recife).
Na
noite de 13-14 de março aparecem sete poemas, Por sete vezes repetidas, Helder
se queixa diante de Deus: por que Te escondes tanto?, por que és tão vingativo?
por que quase me levas a resmungar? o pouco que consigo fazer não vale nada? a
culpa é toda minha? por que Tu amaldiçoas? por que não me dás a mão? Sete
amargas exclamações de impaciência diante do silêncio de Deus. É verdade: o
início do ano 1971 é particularmente angustiante para o Bispo Helder,
perseguido pelo governo, abandonado por parte do clero, incapaz de realizar o
que planeja e que constata que o pouco que consegue realizar não é valorizado.
Por
que Te escondes tanto?.
Se
perguntarem por Teu Nome
que
devo responder?
Se
rirem de Ti
e
disserem
que
já morreste,
já
não és necessário
e
estás sobrando?
Não
precisas de conselhos, é claro.
Se
tivesse em Teu lugar,
não
esmagaria ninguém,
não
faria prodígios para exibir-me.
Mas
ficaria menos distante,
menos
ausente...
Ao
menos dos mais íntimos
Não
me esconderia tanto (pp. 127-130).
Por
que és tão vingativo?
Viste
a miséria
de
Teu Povo
no
Egito.
Não
estás cego,
nem
surdo,
nem
insensível,
nem
sem poder.
Precisarei
lembrar-Te
que
há continentes inteiros
que
viraram Egito?...
Salva-nos,
através
do Mar Vermelho.
Mas,
por Quem és,
não
afogues nas águas
os
modernos Faraós
e
nem mesmo
os
seus cavalos (ibidem).
Por
que quase me levas a resmungar?
Não
me deixes murmurar
Sei
a
impressão tristíssima,
que
Te causam
os
murmuradores (alusão aos ‘murmuradores’ do Livro
Êxodo)
Em
lugar
de
falar entre os dentes,
de
soprar desconfianças,
de
envenenar,
especializar-me
em
ver
o
lado bom da vida
e
o que há de positivo
no
segundo que passa (ibidem).
O
pouco que consigo fazer não vale nada?
É
verdade, Senhor
que
não tenho figos (alusão a Lc 13, 1-9, a parábola da
figueira estéril)
ou,
quando muito, produzo
figos
abortivos,
que
até os animais rejeitam...
Mas
não vale
a
sombra que ofereço?
Não
contam
os
ninhos
que
as aves constroem
confiantemente
em
meus ramos?...
Poda-me,
Senhor!
Faze
enxertos, se preciso.
Não
me deixes falhar
aos
planos misteriosos
do
Senhor e Pai! (ibidem).
A
culpa toda é minha?
Pensas
em arrancar-me
porque
não produzo figos...
Perdoa
que te pergunte:
a
culpa é toda minha?
não
entras em nada,
não
tens parte alguma
na
minha condição tristíssima
de
figueira estéril? (ibidem).
Por
que Tu amaldiçoas?
Não
creio que ninguém
seja
estéril
pelo
gosto de não-produzir.
Não
creio
que
ninguém se alegre
de
ser infecundo,
incapaz
de reproduzir-se,
de
multiplicar-se,
de
vencer a morte
prolongando-se
nos frutos.
Revê,
Senhor, tuas maldições.
Não
amaldiçoes ninguém!
E,
sobretudo, cuidado:
não
cometas a injustiça
de
castigar
quem
já arrasta a humilhação
de
acabar em si mesmo (ibidem).
Por
que não me dás a mão?
Exigiste
figos
Tentei
um esforço máximo.
Forcei
as raízes
a
sugar, ainda mais, a terra.
Sacrifiquei
folhas
pelos
frutos.
Os
figos estão aí
sem
ninguém
que
os apanhe...
Manda,
ao menos, teus passarinhos,
para
que não experimente
a
pior das esterilidades
–
a de criar frutos inúteis
que
acabam caindo
de
maduros e podres! (ibidem).
Na
noite entre 16 e 17 do mesmo mês, de novo uma carga de poemas desolados.
Desta vez são cinco: cadê a terra onde jorra leite e mel? adianta tentar
reconciliar oprimido com opressor? como cultivar a alegria nas condições
em que vivo? e se o filho pródigo nem pensa em voltar para
casa? Tu também não ficaste por vezes desanimado?
Cadê
a terra onde jorra leite e mel?
Senhor,
cadê o leite,
cada
o mel? (alusão ao Livro Êxodo)
Nem
maná,
nem
as maravilhas
que
prometeste.
Longe
de mim murmurar.
Bem
vês
como
Te defendo,
no
meio do nosso Povo.
Mas
como salvar a alegria
Que
tanto exiges
e
é de fato sinal
de
confiança plena
e
de entrega sem limites,
se
meu Povo faminto
nem
pode dizer que tem fome,
se
meu Povo explorado
se
mostrar
o
mais leve amuo
é
preso,
e
espancado,
e
morto? (pp. 136-138).
Adianta
tentar reconciliar oprimido com opressor?
Reconciliar
o
oprimido com o opressor,
se
este,
não
cede uma linha,
continua
a arrancar dinheiro
em
nome do povo
e
nem deixa o povo ver
a
cor do dinheiro? (ibidem).
Como
cultivar a alegria nas condições em que vivo?
Estas
vendo, Senhor
como
sem milagre
a
alegria, este ano,
não
brotará
da
terra estorricada
e
do chão
queimado
de injustiça!? (ibidem).
E
se o filho pródigo nem pensa em voltar para casa?
Senhor,
o filho pródigo
não
pensa em voltar.
Não
está desempregado,
nem
passando fome,
nem
guardando porcos...
Teu
dinheiro,
apesar
de gastos loucos,
multiplicou-se.
Nem
se lembra de Ti.
Nem
sabe se existes! (ibidem).
Tu
também não ficaste por vezes desanimado?
O
demônio do desânimo e da tristeza
não
investiu,
muitas
vezes,
contra
Ti?...
Quando
Teus Apóstolos
não
entendiam
parábolas
simples
como
a do Semeador;
quando
insistiam
em
discussões ridículas
para
saber
quem
o maior;
quando
os Teus
te
desafiavam
a
fazer prodígios
e
Te chamavam, com desprezo,
‘filho
do Carpinteiro’;
quando
Te acusavam
por
andares
com
publicanos e pecadoras
e
Te chamavam
filho
de Belzebu;
quando
os mais íntimos
Te
abandonavam,
traindo-Te,
negando-Te,
fugindo
de Ti;
quando
ficaste na Cruz
entre
dois ladroes
e
tiveste a impressão
de
que o próprio Pai
Te
abandonava
–
que fazias,
como
resistias
ao
Mestre das intrigas
e
Pai da mentira? (ibidem).
O
interessante é que, apenas alguns meses antes, em julho de 1970 (talvez em
circunstâncias mais favoráveis), Helder Camara escreve, de novo numa só noite,
dois poemas que de certo modo contradizem e invalidam os poemas de março 1971.
O silêncio de Deus, que tanto agonia o vigilante de março 1971, resulta ser, em
última análise, falta de silêncio por parte de quem dEle se queixa.
No
silêncio das árvores
Ainda
há
o
agitar dos ramos
movidos
pelo vento...
No
silêncio das águas,
ainda
há
o
marulho das vagas
ou
o cantar da correnteza
atravessando
as pedras...
No
silêncio dos céus,
ainda
há
o
palpitar das estrelas,
carregado
de mensagens...
Aprende
que
não basta não falar
para
atingires o silêncio.
Enquanto
os cuidados te agitam,
ainda
não penetraste
na
área do grande silêncio.
E
aí, somente aí
se
escuta a voz de Deus! (Carta Circular
30-31/7/1970, V, II, pp. 40-41).
E,
na mesma noite,
O
ruído
que
impede de ouvir
a
voz de Deus
não
é
de
modo algum
o
vozerio dos homens,
o
trepidar das cidades
e,
ainda menos,
o
agitar dos ventos
ou
o marulho das águas...
O
ruído
que
abafa de todo
a
voz divina
é
o tumulo interior
do
amor próprio que estremece,
das
desconfianças que se agitam,
da
ambição que não dorme (ibidem).
Eduardo Hoornaert foi professor
catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da
História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação
do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário