Por
Maria Clara Bingemer
Sem ser frequentadora de Gotham City ou fã do Batman, não esperava muito
do filme. No entanto, o mesmo me impactou. Que personagem é aquele, que
figura é aquela, mergulhado no mal desde sempre e tentando incessantemente uma
saída, mas não tendo o consentimento da sociedade para isso?
Outra pergunta cabe ao lado de “que personagem é aquele”? Que ator é
este que indigna e, ao mesmo tempo, desperta compaixão, ternura, empatia?
Representa um assassino. Sim. Contumaz e serial. No entanto, vendo
Coringa, torcer pelo bandido é quase inevitável. Nada simples a obra de
Todd Philips. Ao contrário, altamente complexa. E o talento de Joaquin Phoenix
só faz complexificá-la ainda mais.
O Coringa é um daqueles que Eduardo Galeano chamou de “nadies”, palavra
castelhana que significa “ninguém”. Segundo o poema de Galeano, os
“nadies” sonham com um dia mágico em que a sorte chova abundantemente sobre
eles. Mas isso nunca acontece. Porque eles são invisíveis. Apanham,
apanham e teimam em levantar-se e continuar buscando sair da margem e habitar o
centro, o lugar onde há nomes, rostos, identidades.
No entanto, - ainda segundo Galeano - os “nadies” não são, ainda
que sejam; não falam idiomas, mas dialetos; não professam religiões, mas
superstições; não fazem arte e sim artesanato; não produzem cultura, mas
folclore. Não são seres humanos, e sim recursos humanos; não têm cara nem
nome, não figuram na história oficial. Apenas são personagens da página de
crimes da imprensa e dos meios de comunicação. Valem menos que a bala que os
mata.
O drama do Coringa é esse seu anonimato não escolhido, mas imposto por
suas terríveis circunstâncias de vida. É um ninguém porque é filho de ninguém:
de um pai ignoto ou duvidoso, de uma mãe que não o parira nem amamentara.
A sociedade onde vivia tratou de empurrá-lo sempre para a margem, impedindo-o
de erguer a cabeça a cada tentativa.
A teologia poderia bem situar o Coringa na categoria de vítima. As
vítimas são aquelas pessoas que não podem escolher a vida que desejam porque
são invisibilizadas e neutralizadas por todas as formas de poder. Não se
pergunta a teologia por suas virtudes ou defeitos, sua elevação de espírito ou
sua propensão para o crime. Apenas constata-se que nossa sociedade é
opressora, cruel e de certo modo assassina. E que estes, os “nadies”, são suas
vítimas constantes e ressentidas.
Dessa sociedade é vítima o Coringa, aquele que acaba fazendo da
violência e da morte seu lugar de fala. E esconde seu desespero atrás de
um riso indomável que é prontamente identificado como problema neurológico,
facilitador de enclausuramento ou internação compulsória em hospícios que são,
na verdade, campos de extermínio.
O que o filme mostra é que este que mata e ri não é um caso
isolado. Com ele e como ele são muitos, multidões, legiões de “nadies”,
que a cada dia têm que buscar a vida que teima em se apresentar como ameaça e
morte. Ou como anonimato forçado, que inviabiliza qualquer tipo de
reconhecimento, de proximidade, de relacionalidade.
Contra isso vai a revolta do Coringa, que se constata não ser apenas
dele. Tanto é assim que a cena final, com o personagem já morto, traz algo de
ressurreição e “redenção” que impulsiona e turbina a revolta dos pobres e das
vítimas. Esses e essas vão buscar a visibilidade que desejam com violência.
Por isso, escolhi esse título temerário, perguntando se o Coringa, na
verdade, não nos faz enxergar uma redenção ainda que pelo avesso. Se não
seria sua anti-história uma cristologia invertida. O personagem negativo, vilão
e assassino, na verdade é o único que consegue fazer sair da imobilidade, da
passividade os que penam sob o jugo de ser ninguém em uma sociedade que só abre
espaço para ricos, celebridades e famosos.
Nada mais antagônico à pessoa de Jesus Cristo, com seu evangelho do amor
e do perdão, e sua morte violenta transfigurada em salvação para vítimas e
algozes. No entanto, fazer com que os adormecidos acordem e enxerguem sua
situação; arrancar os “nadies” de sua terra de ninguém não é uma espécie de
redenção? Não será talvez a única possível para as vítimas produzidas por nossa
desumana sociedade? O Coringa como aquele que revela às vítimas sua
aterrorizante condição passa a ser então o anti-herói daquela anti-humanidade.
E assim como Jesus Cristo é o paradigma da história e da humanidade, o Coringa
é paradigma da anti-história e da anti-humanidade.
Saio do filme pensando que, se continuarmos produzindo Coringas,
talvez um dia nossas cidades sejam Gotham City em versão piorada.
Maria Clara Bingemer é teóloga,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de de “Simone Weil –
Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc), entre outros
livros.
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CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
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