Frei Betto
Em novembro,
passei duas semanas em Cuba para assessorar o governo no programa de Soberania
Alimentar e Educação Nutricional, apoiado pela FAO, Oxfam e União Europeia.
Lançado em fevereiro de 2020, o programa, conhecido como Plan San, teve
aprovação oficial em julho de 2020. Em breve, o parlamento cubano dará sua
chancela à Lei de Segurança Alimentar e Educação Nutricional.
O Plan San se
centra em quatro objetivos fundamentais: 1) Reduzir significativamente a
importação de alimentos; 2) Incrementar a produção local de alimentos,
valorizando a agricultura familiar, urbana e suburbana; 3) Ampla campanha de
educação nutricional; 4) Intensa comunicação do Plan San.
Os objetivos
estão interligados, e sua execução envolve a atuação articulada de todos os
ministérios do governo, bem como instituições e associações do país (Comitês de
Defesa da Revolução, Federação de Mulheres, sindicatos, cooperativas etc).
A comunicação
almeja mobilizar toda a população assim como, nos primeiros anos da Revolução,
toda a nação se comprometeu com a Campanha Nacional de Alfabetização. O índice
de analfabetismo, que chegava a 77% da população, zerou. Em 1959 havia em Cuba
apenas 3 mil médicos (dos quais muitos deixaram o país após a vitória dos
barbudos de Sierra Maestra). Hoje, são mais de 100 mil, dos quais 30 mil atuam
em 67 países. O Brasil tem 2,4 médicos por cada mil habitantes, a maioria
concentrada em centros urbanos. Cuba tem 9/1.000 (dados de 2020).
A educação
nutricional é decisiva para o êxito do Plan San. O cubano possui hábitos
alimentares que podem perfeitamente serem substituídos, como a preferência por
pão de trigo, cereal importado. Cuba produz muita mandioca e tem condições de
adotar também o pão de milho e de farinha de coco. A carne pode dar mais lugar
ao consumo de feijão, lentilha, espinafre, amendoim, soja e abacate, ricos em
proteína. Embora não haja muito gado leiteiro na ilha, as novas gerações já se
acostumam com leite e iogurte de soja.
No incentivo à
produção agrícola, destaca-se a agroecologia. Visitei várias propriedades
rurais com alta produtividade e sem uso de insumos químicos. A Revolução,
ao promover a reforma agrária, deu títulos de propriedades a lavradores e
sem-terras.
A capacitação
dos monitores do Plan San, que prioriza o protagonismo dos organismos de base,
como os Conselhos Populares, é feita pela metodologia de educação popular
baseada, sobretudo, na pedagogia de Paulo Freire.
Como o Plan
San é política de Estado e prioridade de governo, espera-se que seus primeiros
frutos possam ser colhidos nos próximos quatro ou cinco anos. O presidente
Diaz-Canel, com quem tive vários diálogos nessa recente visita ao país,
considera-o urgente e imprescindível.
Em Cuba
não há fome. Contudo, o cubano tem muito apetite! O governo gasta mais de 2
bilhões de dólares por ano na importação de alimentos, inclusive do Brasil, do
qual compra, entre outros, arroz e frango.
A situação
alimentar da ilha do Caribe é afetada, sobretudo, pelo bloqueio injustamente
imposto ao país, há seis décadas, pelo governo dos EUA. Essa asfixia impede que
navios da marinha mercante de bandeiras de países que negociam com os EUA
entrem em portos cubanos. Os containers são descarregados no Panamá e na
Jamaica e, em seguida, os produtos são transportados à ilha, o que os encarece.
Somam-se a isso as catástrofes climáticas que periodicamente castigam o país,
como furacões, enchentes e secas, e o fato de Cuba se ver obrigada a importar
petróleo para obter energia, já que é pobre em recursos hidráulicos.
Dois fatores
recentes contribuem para estrangular a frágil economia cubana: a inclusão do
país na lista “made in USA” dos países “promotores de terrorismo”, embora não
haja o menor indício disso. Pelo contrário, Cuba participa do combate ao
terrorismo, como o comprova o livro de Fernando Morais, “Os últimos soldados da
guerra fria” (Companhia das Letras, 2011). E, por razões humanitárias, o país
socialista exporta médicos e professores para inúmeras nações empobrecidas.
Como “desgraça
pouca é bobagem”, reza o ditado popular, a Covid obrigou a ilha a fechar as
portas à principal fonte de divisas nos últimos anos, o turismo. Agora começam
a voltar os turistas, já que se logrou reduzir drasticamente a contaminação, foram
adotadas medidas sanitárias rígidas (máscara é obrigatória fora de casa) e
criadas três vacinas, o que possibilitou a imunização de quase toda a
população.
Há, porém,
outra pedra no meio do caminho: Biden ainda não revogou as 243 novas medidas adotadas
por Trump para reforçar o bloqueio, e ainda decidiu punir todos os bancos e
empresas que tiverem alguma transação em dólar com Cuba. Hoje, dólar é papel
colorido na ilha. Impossível trocá-lo em bancos, casas de câmbio, hotéis e
lojas. São aceitos apenas euros e cartões de crédito.
Apesar dessa
situação dramática, Cuba resiste. Toda a população, de quase 12 milhões de
habitantes, tem acesso à cesta básica mensal e, gratuitamente, aos sistemas de
saúde e educação. Não há pessoas vivendo em situação de rua ou pedintes.
Frei Betto é escritor, autor da “Cartilla popular
del Plan de Soberanía Alimentaria y Educación Nutricional de Cuba” (La Habana,
2021), entre outras obras. Livraria virtual: freibetto.org
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