Frei Betto
Frei Cláudio,
frade carmelita, era o pároco da igreja do Carmo, vizinha à casa de minha
família em Belo Horizonte, e na qual fiz catequese. Esguio, alegre, sempre com
uma nova piada na ponta da língua, este holandês de alma brasileira cativava
todos que o conheciam. Na conversa, falava em frases curtas, terminadas por
interjeições interrogativas, e seu olhar luzidio em busca da concordância do
interlocutor expressava reticências. “Han?... hein?...”
Durante os
anos em que estive preso pela ditadura militar, ele foi um dos meus anjos da
guarda, ao lado de seu confrade Carlos Mesters. Suas cartas eram frequentes, e
as respostas estão registradas em minhas “Cartas da prisão” (Companhia das
Letras, 2017).
Em sua missa
das 11 aos domingos o espaçoso templo ficava repleto, e muitas vezes defendeu
em seus sermões os presos e perseguidos políticos e denunciou o arbítrio que
governava o Brasil. Ainda que poucos paroquianos tentassem intimidá-lo, jamais
abdicou de sua postura profética na defesa dos direitos humanos. Trazia nos
olhos da memória a visão de homens, mulheres e crianças que, durante a ocupação
da Holanda pelos nazistas, passavam famintos e sedentos pela pequena
propriedade rural da qual seus pais tiravam o parco sustento da família.
Tinha-se a
impressão de que era um homem onipresente. Visitava com frequência os
paroquianos, ainda que não fossem católicos. Inúmeras vezes almoçou e lanchou
na casa de meus pais, na esquina das ruas Major Lopes e Padre Odorico. Adorava
as frutas do Brasil, que jamais havia conhecido em sua infância na Holanda.
Vi-o fatiar e comer, sozinho, dois suculentos abacaxis.
Sempre o tive
na conta de pároco modelo. Imprimiu um dinamismo na paróquia do Carmo raramente
encontrado em outras. Com a colaboração de voluntários, mobilizados por sua
contagiante simpatia, dotou-a de ambulatório e serviço de assistência jurídica,
cursos profissionalizantes e rede de apoio aos moradores das favelas vizinhas,
além de outras atividades.
Escritor
compulsivo, trafegava com desenvoltura da liturgia à Bíblia, de temas
comportamentais aos espirituais, e coletava a sabedoria contida em frases
gravadas na traseira de caminhões, com as quais publicou um livro.
Formado em
Psicologia, aprimorou em Roma sua formação teológica. Seus sermões, acentuados
de bom humor, e até mesmo de “causos” de fazer beatos se arrepiarem, destoavam
da ortodoxia. Não fazia pregações abstratas, e sim conectadas com a realidade,
incisivas, contundentes. Seu comportamento heterodoxo provocou a ira de
católicos conservadores que recorreram às altas instâncias eclesiásticas para
que frei Cláudio fosse calado ou afastado da paróquia. A indignação causada
pela proposta, inclusive junto a ateus e não paroquianos que tanto o
admiravam, suscitou massiva mobilização que o manteve no Carmo.
Nos últimos
anos, o Alzheimer privou-o progressivamente da memória. De nosso último
encontro, no jardim da casa paroquial, guardo o seu sorriso cândido e o fulgor
afetuoso de seus olhos azuis. Há pouco, recolhido ao hospital, contraiu Covid.
Aos 88 anos, transvivenciou.
Frei Betto é escritor, autor de “Ofício de
escrever” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é
autor de 70 livros, editados no Brasil e no exterior. Você poderá adquiri-los
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