Maria Clara Lucchetti Bingemer
A palavra compaixão talvez
seja uma das menos entendidas de todas as línguas. Normalmente é
associada à pena, piedade, comiseração. Ora, não há nada mais alheio ao
sentido visceral dessa palavra forte e ardente – compaixão – do que essas
edulcoradas e humilhantes definições.
Compaixão é sofrer com, padecer solidariamente e em comunhão. Tem a ver
com justiça e restaurar dignidades atingidas e cruelmente vulneradas. Compaixão
é o sentimento que caracteriza o ser humano diante de seus irmãos em humanidade
que se encontram desumanizados pela pobreza, a violência e a opressão. É
o que move o coração dos justos diante da iniquidade e do sofrimento do
outro. É o que enche de desejo de comungar com a dor do outro e fazê-la
sua.
Perante as vítimas inocentes da injustiça,
dentro de um ambiente de globalização e pluralismo como é o nosso hoje,
existirá um critério de entendimento e convivência irrevogavelmente
reconhecido e vinculante para todos e, neste sentido, capaz de ser reconhecido
como verdadeiro? Parece-me ser compaixão a palavra-chave para encontrar a
resposta. Pois ela é capaz de suscitar a memória subversiva das vítimas para
fazê-las de novo ativas na história.
É este conceito-atitude que procura exprimir a
necessidade de o cristianismo abandonar a sua ameaçadora autoprivatização
acomodada. Compassio não é um sentimento a partir de
cima ou de fora, mas a percepção do sofrimento alheio, no qual se toma parte e
que eticamente obriga. Para esta compaixão, vale o imperativo categórico:
“para, escuta e olha”.
A compaixão é a capacidade de partilhar o sofrimento do outro. Com efeito, o
mais terrível do sofrimento não é tanto ele em si, mas a solidão que nele se
experimenta. Por isso alguns teólogos contemporâneos tratam de elaborar
uma memoria passionis (memória da paixão) como categoria
de base de uma teologia em espaço público. Trata-se de recordar –
lembrar com o coração - os sofrimentos dos outros; fazer um rememorar
público do sofrimento alheio, incorporado de tal maneira ao uso público da
razão que a esta imprima um selo.
A compaixão parte, portando, da universalidade da
experiência do sofrimento. A partir daí entende a teologia contemporânea a
necessidade de uma nova teologia política que contribua vigorosamente para uma
Igreja compassiva, funcionando a “memoria passionis” como
recordação provocadora que fundamenta uma nova ética.
Os que sofrem, as vítimas de todo tipo, teriam então uma autoridade. E esta
autoridade seria a autoridade interior de um ethos global, de
uma moral mundial, que obrigaria todos os homens anteriormente a qualquer
ideologia, a qualquer entendimento. Uma moral que, por conseguinte,
não pode ser posta de lado ou relativizada por nenhuma cultura e por nenhuma
religião, ou igreja. Toda verdadeira mística, hoje, sobretudo após Auschwitz,
não pode não ser inspirada por esse ethos. E uma política inspirada por
este ethos seria mais e diferente de uma pura executora das
orientações do mercado, da técnica e de suas opressões objetivas em nossos
tempos de globalização. Seria, portanto, mais humanizante e libertadora.
Aquilo que a teologia política explicitou na Europa do pós-guerra, que a
teologia da libertação tematizou na América Latina a partir dos anos
1970, muitos já o viviam e o vivem em suas vidas e experiências
espirituais, explicitando-o em sua práxis. Referimo-nos aqui a
fenômenos como o dos padres operários, na Europa dos anos 1950; a pessoas como
Madeleine Delbrel, apóstola das ruas de Paris; a Simone Weil, filósofa
agnóstica que a partir da dureza do trabalho da fábrica vivido em seu corpo
encontra a Deus e a Jesus Cristo, já nos anos 1930, antes mesmo dos horrores da
guerra. E a tantos outros e outras que já viviam e narravam o que a teologia
posteriormente elaborou em estilo articulado e rigoroso.
É possível, portanto, afirmar que o critério universal da condição humana
se encontra na interpelação feita pela pobreza e a dor do outro e pela
compaixão que ela origina. Todo este movimento não é apenas ético, mas
também místico - ou melhor, é místico porque ético e vice-versa - uma vez
que na Revelação bíblica e no Cristianismo ambas as coisas não se dissociam. Só
encontrando aí sua fonte de inspiração primeira e iniludível pode a Teologia
não ser infiel à sua identidade e à sua missão.
--
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
e autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco),
entre outros livros.
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