Uma das
últimas notícias do ano 2021, no campo religioso, é das mais insólitas. E mais
interessantes. No início de dezembro, o Convento de Santa Clara, en Manresa, na
Catalunha (Espanha), anunciou que deixava de ser um convento de clausura
para poder exercer um trabalho em favor dos mais vulneráveis da sociedade.
Santa Clara
de Manresa é uma fundação muito antiga, oriunda do movimento franciscano em
seus inícios. Já entre o final do século XIII e início do século XIV, irmãs de
Santa Clara se estabelecem em Manresa, no exato lugar onde Inácio de Loyola, mais
de dois séculos depois (no século XVI) vai meditar e planejar a formação da
Companhia de Jesus. O impressionante conjunto de edifícios passa, no XVII, para
as mãos de irmãs dominicanas de clausura.
Agora,
recentemente, a religiosa dominicana Lúcia Caram, de origem argentina, passou a
ser superiora de Santa Clara e começou uma experiência de passagem de vida
contemplativa à vida religiosa ativa, de caráter social. Seguida por
diversas religiosas, apoiada pelo Papa Francisco,
a irmã
Lúcia Caram (à direita do papa, na foto), juntamente
com um grupo de religiosas dominicanas, conseguiu se desvincular da Federação
Dominicana chamada Imaculada e mudar as regras de vida da comunidade religiosa.
O grupo conseguiu superar impedimentos burocráticos. A iniciativa no sentido de
abandonar uma regra incompatível com um trabalho social em favor dos
necessitados - algo que essas irmãs vêm realizando desde mais de uma década sob
a liderança de Lúcia Caram através da ‘Fundação do Convento de Santa Clara’ –
tem redundâncias de longo alcance e nos aponta a possibilidade de abandono de
um princípio, que orienta a vida religiosa desde muitos séculos. Uma mudança ainda
incerta nos dias que correm (afinal, a experiência de Santa Clara em Manresa é
algo muito isolado pelo momento), mas que merece nossa atenção e reflexão. Daí
o texto que segue.
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O princípio
contemplativo.
Temos de
cavar fundo na história para perceber o que está por trás da decisão daquelas
irmãs de Santa Clara em Manresa. Na opção por vida contemplativa, entra um fator
absoluto e um fator relativo. O fator absoluto reside na vinda de Deus numa
vida humana, o relativo ao fato que a resposta ao apelo de Deus é historicamente
condicionada e, portanto, sujeita a precariedades, provisoriedades e
fragilidades próprias de tudo que é histórico. No caso da opção por uma vida
contemplativa, entram, ao lado do mencionado fator absoluto, os
condicionamentos da tradição cristã no longínquo século III.
No século
III dC, o cristianismo se impregna progressivamente de elementos da cultura
helenística, hegemônica em toda extensão do Império Romano da época. Forma-se um
só tecido, em que sabedoria grega e espírito cristão de tal modo se entrelaçam que
fica quase impossível destrinchar o que provém do evangelho e o que deriva de
influências helenísticas na época, concretamente da sabedoria neoplatônica.
Explico-me.
Quando, no ano 244 dC, o filósofo alexandrino neoplatônico Plotino (203-269 dC),
aparece em Roma e aí forma uma escola de filosofia, ele alcança um renome
extraordinário em poucos anos. A filosofia de Plotino, na realidade uma
sabedoria de vida, capta admiravelmente a solidão dos indivíduos nas grandes
cidades do Império Romano. Ao sentimento de vazio, ela responde com uma arte de
vida que ensina o amor pelas realidades espirituais, a purificação do amor,
partindo do que é ‘material’ ao que é ‘espiritual’.
O sucesso
dessa filosofia é tão intenso que o neoplatonismo vai permeando aos poucos a
inteligência e a espiritualidade cristãs. Não exagero quando falo aqui em ‘violação'.
A ‘alma’ (psuchè) da filosofia platônica de tal modo subjuga o ‘espírito’
(ruah) da tradição bíblica, que esse último quase desaparece. Uma absorção quase
completa. Cria-se uma confusão que perdura por longos séculos. Muitos confundem
‘alma’ (princípio oposto a ‘corpo’, segundo Platão) com ‘espírito’ em sentido
bíblico. Passa-se a falar em ‘espiritualidade’ num sentido platônico, dentro da
pressuposição de um ‘espírito mergulhado em matéria’.
Nas
comunidades cristãs se opera um progressivo processo avassalador. Tudo começa
nas comunidades de Alexandria, no Egito, a segunda cidade do Império Romano,
onde, já no início do século III, as interpretações neoplatônicas tomam conta
da reflexão cristã, como se verifica nos escritos de Clemente de Alexandria e
Orígenes, e se alastra pelas comunidades espalhadas pelo universo do Império
Romano. Aparece uma multiplicidade heterogênea de filosofias e ‘artes de vida’,
todas inspiradas nas ideias do filósofo grego Platão, atingindo comunidades
cristãs pelo mundo afora. Podemos dizer que Plotino promove uma síntese entre o
pensamento grego e a visão bíblica do mundo, o que, para muitos observadores, é
um enriquecimento. Não será que estamos aqui, na realidade, diante de um
ocultamento? O ocultamento da dimensão social da vida cristã, o esquecimento do
imperativo evangélico da opção por fracos e despossuídos?
O neoplatonismo
cristão, ao se caracterizar por uma categórica oposição entre o espiritual e o carnal, resulta na aversão frente ao mundo dos sentidos, os cinco
sentidos que nos colocam em relação ao mundo e nos fazem enxergar o que nele se
passa. O mestre neoplatônico recomenda uma rigorosa ascese, com a finalidade de
a pessoa se libertar da matéria. Isso
fica claro nos escritos dos Padres da Igreja, os intelectuais dos séculos III a
V, todos, de um ou outro modo, afetados pelo neoplatonismo. No século V, Agostinho
abre largas portas para sabedorias neoplatônicas, que doravante se infiltram em
sermões, catecismos, teologias. No neoplatonismo agostiniano, tempo e história
perdem seu sentido. O cristão neoplatônico não pensa em política, nem em
questões sociais. Para ele, o drama se processa entre a alma e Deus. Os
impulsos do corpo devem ser controlados e possivelmente eliminados. O acento
cai na contemplação e na meditação, nos chamados ‘exercícios espirituais’. Enfim,
tudo emana da razão e da vontade, não dos impulsos do corpo. O corpo deve ser
mortificado.
Dou alguns
dados a mais, acerca da compreensão platônica do mundo e da vida. Abaixo do
mundo divino, onde o mal não penetra, existe a matéria, onde a luz divina só
penetra em forma de sombra (veja o ‘mito da caverna’, de Platão). A matéria é o
último reduto das trevas, a raiz do mal que afeta a vida humana. O corpo,
morada da alma na matéria, é um espaço ambíguo: ou se deixa seduzir pelas formas
vãs da matéria, ou se fascina com a luz imaterial. O corpo é prisão e sepulcro,
mas pode se tornar trampolim para a luz. Precisa a alma tomar distância diante
dos impulsos do corpo, por meio do amor pelas realidades espirituais, pela purificação
do amor. O homem precisa deixar para trás o mundo material e caminhar para o mundo
espiritual. Precisa a alma arrancar tudo
de si para amar o que é invisível, fechar os olhos diante da materialidade
e esperar o Deus que vem, assim como, antes da aurora, nossos olhos esperam a
chegada da luz do sol. Para perceber a luz espiritual, há de se exercitar a
‘contemplação’. Quando o sol chega, ele logo toma conta de tudo. A luz
espiritual dissipa as trevas da matéria. Eis algumas imagens usadas por Plotino.
O
resultado: enquanto o neoplatonismo se ‘cristianiza’, o cristianismo se
‘neoplatoniza’. Esse é o processo. A perspectiva social, onipresente nos
evangelhos, desvanece. Aparece um drama de outro tipo, o drama que se processa
entre a ‘alma’ e Deus. Os impulsos do corpo são controlados e possivelmente
eliminados, enquanto o ápice da experiência cristã passa a ser a contemplação
de Deus.
A
facilidade com que o neoplatonismo penetra no mundo cristão se deve, entre
outros, ao fato que ele, impregnado de um senso religioso agudo e místico em
seus intentos, parte de uma concepção muito próxima ao monoteísmo bíblico, o
que faz com que muitos confundam as coisas e não consigam distinguir com
clareza entre cristianismo e neoplatonismo.
Termino ressaltando
que a interpenetração entre cristianismo e neoplatonismo se processa de forma
lenta, quase imperceptível. Nem sempre aparece com clareza no nível dos textos.
Nem sempre é fácil saber se tal Padre da Igreja é um pensador cristão imbuído
de ideias neoplatônicas ou um neoplatônico que trabalha com imagens e símbolos
cristãos. O caso de Agostinho (século V) é sintomático: será ele um místico
neoplatônico que usa categorias cristãs ou um místico cristão que recorre a
categorias platônicas? Quem dirá?
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Conventos
de clausura.
A expressão
convento de clausura, que aparece nos termos da decisão tomada pela Irmã
Lúcia Caram e suas coirmãs em Manresa, tem a ver com o que acabo de descrever. Tem
a ver com espiritualidade neoplatônica.
Explico. Sendo
a filosofia neoplatônica uma arte de viver, ela tem um grande impacto na vida
cotidiana, não só nas altas classes romanas, mas igualmente no meio do povo, nas
comunidades cristãs. É dessa impregnação que nasce o movimento monacal. Já no
século III, o século de Plotino, grupos andam pelo mundo à procura de ‘espiritualidade’.
Grupos compostos de pessoas que rejeitam o modo de vida na cidade e preferem
andar pelo mundo. Os ‘monachoi’ são, em sua maioria, camponeses que vivem à
margem do mundo estabelecido, nos terrenos ainda inexplorados que rodeiam as
cidades e vilarejos do Oriente cristão. Sua experiência nos fornece um
‘insight’ na vida de coptas, sírios, palestinenses, capadócios, habitantes do
Ponto, africanos do norte, etc. nos séculos III e IV. Gente que, de outro modo,
nunca teria entrado na literatura.
O
‘monachos’ (monge) anda sozinho, ele não se estabelece numa ‘casa’, mas anda
só, sem vínculo (em grego, a palavra ‘monos’ significa ‘solitário, sem
vínculo’), recusa a vida cidadã sedentária. Ele ‘foge do mundo’ e ‘vai ao
deserto’.
Todas as localidades
do mundo romano antigo têm seu ‘deserto’ (seu ‘erèmos’, em grego). Ou, para
falar em termos brasileiros, seu ‘mato’. É no mato, em torno das conglomerações
humanas, onde vivem os bichos, que encontramos o monge, que precisa vencer o
medo dos bichos (alguns perigosos como leões e cobras) e saber arranjar sua
comida (normalmente por mendicância) para sobreviver. Normalmente, a distância topográfica
entre a cidade e o ‘deserto’ é pequena. Muitos desses ‘anacoretas’, ‘eremitas’
ou ‘monges’ vivem ao alcance da vista das pessoas que vivem na cidade ou no
vilarejo. O monge fica por um período longo numa cela solitária rezando,
jejuando, sem falar com ninguém. A qualquer momento ele parte de novo e vai
caminhando, se for monge de verdade.
Com o
tempo, principalmente na imensidão do Egito, esses ‘monges’ e ‘monjas’ se
congregam em casas comuns, em ‘mosteiros’ ou ‘conventos’. Exemplo paradigmático é a ‘congregação’ em
torno do monge Pacômio, que já conta com três mil mosteiros em 340, data de sua
morte.
A
experiência se desdobra, ganha corpo, atravessa os séculos, conquista o
universo cristão e acaba marcando profundamente o universo cristão, tanto no
Ocidente como no Oriente.
Sabemos
todos/as que o monarquismo não se restringe ao mundo cristão e que existem,
milenarmente, monaquismos budistas, hinduístas e shintoistas, hoje com
crescente influência no mundo cristão. Por isso quero deixar claro que aqui só
trato de monaquismo cristão de cunho platônico e que me limito a afirmar que é esse
tipo de monaquismo que se espalhou larga e longamente no universo cristão e o
caracteriza até hoje. Meu intento consiste em mostrar que a impressionante proliferação
de conventos de clausura e mosteiros, ao longo de séculos, muito tem a ver com um
movimento de espiritualidade grego-cristã, denominado neo-platonismo, com os
pressupostos acima descritos.
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A coragem e
a lucidez da Irmã Lúcia Caram.
Diante
desse painel histórico, as figuras da Irmã dominicana Lúcia Caram e de suas coirmãs
ganham alto relevo. Essas mulheres captam o que se passa no mundo e percebem
que um modelo de vida religiosa vai esvaecendo. Decidem abandonar a vida ‘contemplativa’
e abraçar a vida religiosa ‘ativa’. Vanguarda de uma geração que entende que o
declínio do paradigma contemplativo acontece por toda parte, de modo variado e
intermitente, com altos e baixos, sucessos e derrotas, oposições e adesões.
As religiosas
de Manresa sabem que o instituto eclesiástico, em geral, reage com nervosismo
diante desse declínio em marcha e não se sente bem no novo mundo que vai se
delineando. Sabem que isso gera um labirinto
tão intricado de explicações, controvérsias e hipóteses, que resulta
praticamente impossível traçar linhas minimamente claras. Elas sabem igualmente
que a ´vida religiosa‘, em não poucos aspectos proveniente do passado, está na
iminência de perder o trem da história e que a igreja está numa
encruzilhada, parada. Ainda não decidiu que direção tomar, ainda não respondeu
aos desafios de nosso tempo.
O perigo de
descarrilamento é real. Se não houver posicionamento por parte dos/as
próprios/as religiosos/as, muitos conventos, principalmente os que se situam em
centros históricos (e turísticos) de cidades importantes, seguirão a lógica do mercado
imobiliário, ou seja, serão transformados em hotéis, pousadas ou restaurantes
de luxo.
- Aqui em
Salvador, já faz anos que o histórico Convento do Carmo, no centro turístico da
cidade, virou um hotel cinco estrelas.
- Na cidade
em que nasci (Bruges, na Bélgica, cidade histórica), o Convento de Santa Clara
foi vendido e as irmãs foram morar num castelo no sul da França.
- Em muitos
lugares turísticos, ‘pousadas’ são na realidade conventos transformados.
Refiro-me
apenas a alguns casos que conheço pessoalmente. Não conferi dados estatísticos
(se é que existem).
Penso que
se trata de um tema que interessa a todos/as que participamos da cultura ocidental,
que sejamos cristãos ou não. Pois, não raramente, os conventos constituem um
patrimônio cultural de valor e, nesse sentido, podem ser considerados
patrimônios da sociedade como um todo. Seu destino interessa à sociedade como
um todo.
Será tão
inconveniente ver roupa lavada estendida em janelas de conventos, encontrar crianças
brincando nos venerandos pátios e moradores de rua cuidando, com todo respeito,
em preservar o ‘patrimônio’ em que residem? O destino, irremediavelmente, tem
de ser a hotelaria, o turismo, a lógica imobiliária? Isso é irreversível? Moradores de rua, hoje, já não se abrigam em degraus
de igrejas e conventos, nos centros de nossas cidades? Por que não se lhes abre
a porta?
Falo de um
processo que só tem chances de surtir efeito por meio de uma decisão por parte
dos/as efetivos religiosos/as de convento, como demonstra o exemplo das Irmãs
de Manresa. Aqui, mais que em outros processos, decisões de cima para baixo
correm o perigo de não dar em nada. Os superiores podem incentivar a reflexão,
mas - afinal – a transformação da vida ‘contemplativa’ em vida ‘ativa’ depende
de uma transformação no foro interior dos próprios habitantes de conventos. Por
isso as considerações de teor histórico, que pincelei acima.
Termino com
os depoimentos de duas pessoas que conhecem de perto a experiência de Santa
Clara de Manresa:
- Josep
Miquel Bausset (81 anos), monge de Montserrat na Catalunha, ao aludir à decisão
das Irmãs de Manresa: A vida
contemplativa se torna um problema quando deixamos de viver como discípulos de
Jesus e nos tornamos uma caricatura do que teríamos de ser. Como a figueira
estéril que não dá fruto.
- Gemma
Morató, uma religiosa catalã muito ‘mediada’: Não creio que nada morra com essa iniciativa das irmãs de Santa Clara.
Ao contrário, é uma inovação. Oxalá muitos conventos, mosteiros, congregações e
institutos se mostrem capazes de se perguntar o que lhes inspira o Espírito
hoje.
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