Maria Maria Clara Bingemer
Tenho passado esses primeiros dias do
ano em companhia de algumas mulheres brasileiras extraordinárias. Fico feliz
quando vejo outras mulheres brilhando e fazendo diferença no mundo: além de
carregar e cuidar da humanidade desde o ventre até os momentos finais da
velhice e da morte, criam novos espaços e aberturas por onde a humanidade se vê
maior e mais digna.
Aracy de Carvalho Guimarães Rosa é
uma delas. Já havia lido sobre ela e assisti à série da Globoplay,
“Passaporte para a liberdade”. Que mulher extraordinária, em sua coragem,
doçura, feminilidade e compaixão. Seu coração batia ao compasso da dor
alheia, e assim assumiu a paixão de todo um povo.
Casada com um dos maiores
escritores brasileiros, é a figura dela que aparece e se agiganta durante a Segunda
Guerra. João Guimarães Rosa homenageou sua bem-amada dedicando-lhe o
maravilhoso livro “Grande Sertão Veredas”, e viveu a seu lado até morrer.
A brasileira que figura no Yad Vashem
como Justa das Nações enche o Brasil de orgulho e aviva a memória e a
consciência diante do genocídio nazista para que nunca mais se repita.
Armada apenas de sua coragem e empatia, Aracy salvou muitas vidas naquele
contexto de morte. E em meio a esse trabalho cotidiano e heroico ainda
encontrou tempo para o grande amor de sua vida, unida a ele em companheirismo,
carinho e parceria. Heroína e mulher apaixonada, Aracy de Carvalho é uma dessas
sínteses raras e brilhantes que apenas as mulheres sabem construir.
Nara Leão, com sua voz de sussurro
doce e personalidade brilhante e talentosa, é outra de minhas recentes
companheiras. Eu a ouvi muito, seguindo seus passos e seu canto livre nos
anos de minha juventude. Primeiro, as canções que cantava me embalavam,
depois me faziam estremecer e sentir desejo de lutar, e finalmente me
acompanhavam em momentos mais maduros da vida.
Porém, a excelente série documental
exibida igualmente pela Globoplay revela uma Nara da qual eu não media toda a
estatura e brilho. Mulher livre, independente, seguia a vocação que sabia
ser a sua, em meio a um universo composto quase que totalmente de homens.
Passou com soberana e sobranceira liberdade em meio a este ambiente machista
fazendo amigos, despertando admiração, e acrescentando novidade bonita e
enriquecedora ao movimento musical que nascia e marcaria para sempre a história
da música não apenas brasileira, mas de todo o mundo.
A liberdade e o talento de Nara, com
seu jeito doce e sua voz jamais estridente ou agressiva, marcaram presença e
enfrentaram a cruel ditadura militar dos anos de chumbo. Toda tentativa
de calar sua voz mansa e deliciosa fracassou e ela continuou, livre e
entusiasmada como sempre, fecundando o chão por onde passava e construindo
beleza e arte.
A amizade com personalidades
brilhantes do mundo da música, como Roberto Menescal e Chico Buarque, o
casamento e parceria com Cacá Diegues que se tornou amizade, maternidade e
paternidade, a relação amorosa com os dois filhos, tudo isso fez da vida de
Nara um caminho salpicado de brilho e luz, que ela repartiu com seus ouvintes e
fãs, que se multiplicaram. Seu legado perdura até hoje, com a marca
imortal daqueles que realmente possuem talento e são mordidos pelo fogo sagrado
da inspiração.
A vida de Nara Leão foi breve, mais
curta do que seria desejável. Partiu aos 47 anos. Justamente por
isso seu legado impressiona ainda mais. Parafraseando Camões, como pode
ser para tão grande amor tão curta vida? Como pode aquela menina de
franjinha, cabelo Chanel e voz suave ser tão gigantesca e construir tanto nos
anos que lhe foi tocado viver?
Aracy viveu centenária, faleceu aos
103 anos. Sobreviveu a seu amado, morto aos 59 anos, dias após ser empossado na
Academia Brasileira de Letras.
Se é verdade que cada vez que se
salva um ser humano, salva-se toda a humanidade, sua vida ainda é mais longa,
mais prolífera, continuada em tantos que não teriam a chance de viver sem sua
corajosa intervenção, arriscando-se em um dos sistemas mais cruéis que o mundo
já conheceu.
A paixão pela justiça e a compaixão
ativa de Aracy certamente inspiraram a frase que João Guimarães Rosa escreveu
em seu romance maior, “Grande Sertão Veredas: “O que a vida quer da gente é
coragem”. O genial escritor viu e viveu essa coragem encarnada em sua bela,
educada e poliglota mulher.
A maneira feminina e plena de Nara estar
no mundo, cantando livremente e sem abrir mão de viver aquilo para o que se
sentia feita, certamente abriu caminho para que outras mulheres a seguissem e
pisassem em suas pegadas. Se Rosa tem razão, coragem Nara teve de sobra
em sua tão fecunda vida, ao espalhar arte e beleza por onde passava e despertar
os ouvidos de todos com sua voz tão particular e característica.
Obrigada, irmãs, amigas,
companheiras. Vocês são a melhor companhia que eu poderia ter neste
começo de ano. Amigas da vida, apaixonadas pela justiça, abertas à comunhão que
é feita de beleza e encantamento, mas também de luta, dureza, risco e
coragem.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora
Paulus), entre outros livros.
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