Marcelo Barros
É normal que no começo de cada ano, as pessoas renovem
os seus votos de feliz ano novo. É verdade que o ano judaico começa em setembro;
o ano chinês, muçulmano e andino, cada um, em datas diferentes. No entanto, a
cultura ocidental se impôs. No mundo inteiro, o 1º de janeiro é considerado o
começo do ano civil. Religiões e tradições populares se inserem nessa realidade.
Videntes fazem previsões e as comunidades negras enchem as praias com lindas
oferendas a Iemanjá.
Parece que no “salve-se quem puder”, instituído pelo
individualismo capitalista, cada um se agarra com a divindade que pode para
escapar do pior e ter algum sucesso na luta pela sobrevivência. As pessoas
esperam em Deus, como o menino que, na prova do final de ano, escreveu que
Paris é capital da Inglaterra e pediu a Deus para ganhar uma nota boa. Deus nem teve como dizer
ao menino que esse milagre nem Ele, a quem chamam de todo-poderoso, pode fazer.
Há alguns anos, agências norte-americanas de notícias
informaram que, em um tribunal dos Estados Unidos, Ernie Chambers, senador
democrático por Nebraska, tinha aberto um processo criminal contra Deus. A
acusação era que Deus provoca terremotos, furacões, guerras e nascimentos de
crianças com má formação. Também Deus teria distribuído documentos, considerados
sagrados, que transmitem medo e insegurança às pessoas, só com o objetivo de
conseguir obediência total e servil. O processo caminhou até o Tribunal de
Justiça, mas o Juiz, encarregado do processo, respondeu que não poderia abrir o
processo: “Se o senhor não tem endereço postal do acusado e um número de
telefone com o qual possamos nos colocar em contato com ele, não temos como
convocá-lo a uma audiência e julgá-lo”.
Isso nos lembra que, nestes dias do começo de janeiro,
no Centro-oeste e em várias regiões do Brasil, os grupos de folias de Reis
cantam “Deus vos salve, casa santa, onde
Deus fez a morada, onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada”. Conforme
estes devotos, o endereço de Deus é a casa dos companheiros, o lugar dos pousos
e da alegria da festa dos Santos Reis que foram os primeiros intelectuais do
mundo a cultuar a Deus, através do menino Jesus que, conforme a tradição,
acabara de nascer.
A intuição que estes pobres transmitem ao mundo em
suas canções é que Deus não é todo poderoso e culpado de tudo o que acontece.
Se fosse assim, eles culpariam a Deus de tantos sofrimentos e desventuras de
suas próprias vidas. Ao contrário, agradecem a Deus por estar sempre com eles
na resistência. O padre Ernesto Balducci, filósofo e espiritual italiano, dizia
com convicção: “Enquanto não renunciarmos
à idéia de um deus onipotente, não compreenderemos o que é o Natal”.
De fato, o mundo está cansado de guerras e violências,
cometidas em nome de Deus. Esta imagem clássica de um Deus todo-poderoso,
responsável por tudo o que acontece e sem o qual nada acontece, merece mesmo a
acusação e o processo do senador Chambers. Antes dele, o escritor José Saramago
tinha escrito ao 2º Fórum Social Mundial protestando contra todas as mortes
cometidas em nome da religião e da fé. Em pleno século XXI, em nome de Deus,
grupos católicos e evangélicos fazem cruzadas, querem impor os seus dogmas como
se fossem de Jesus e justificam o que dizia o cineasta Woody Allen: “Deus deve ser um cara bom, mas os amigos
dele, eu não recomendaria a ninguém”.
Em um livro de meditações cotidianas, o irmão Roger
Schutz, que foi pastor evangélico, fundador da comunidade ecumênica de Taizé, deixou
claro: “Deus não castiga ninguém. Deus só
pode amar e só ama. Se não, não seria Deus”.
Na realidade, Jesus transformou a imagem de Deus e,
“ao derrubar do trono os poderosos”, como cantou Maria, sua mãe – neste
sentido, parece até que Herodes tinha razão de temer – derrubou também o
próprio trono de Deus. Atualmente somos todos chamados a nos tornar crianças
para aprender de Jesus a espiritualidade dos reis.
O
Evangelho insiste na infância espiritual e na alegria das bem-aventuranças.
Muitas vezes, a tradição ocidental fixou-se em métodos de espiritualidade que
tornam as pessoas sérias demais, artificialmente adultas. O Mestre Eckhart,
místico medieval, ensinava que “cada um
de nós tem uma dimensão mística. Esse ser místico é a criança que existe dentro
de nós”. Sta Mectildes, abadessa medieval, ensina: “Deus conduz a criança que existe dentro de nós de maneira maravilhosa.
Deus leva a alma a um local secreto e brinca com ela. Deus afirma: “Eu sou teu
companheiro de brinquedos. Tua infância é a companhia para meu Espírito.
Conduzirei a criança que existe em ti nas formas mais maravilhosas, pois te
escolhi”[1].
Não
é esta uma boa descrição das folias de Reis? Milton Nascimento canta: “Dentro de mim mora uma criança, um moleque.
Quando em mim, o adulto fraqueja, a criança vem e me dá a mão”[2].
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o
mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed.
Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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