Leonardo Boff
A
pandemia mostrou uma abissal desigualdade mundial e uma falta cruel de
solidariedade para com aqueles que não podem fazer o distanciamento social e
deixar de trabalhar senão não têm o que comer.Para sermos concretos: não
abandonamos ainda o mundo da barbárie e se já a havíamos deixado, retornamos a
ele. O nosso mundo não pode ser chamado de civilizado porque um ser humano não
reconhece e acolhe outro ser humano,independente do dinheiro que carrega no
bolso ou tem depositado no banco ou de sua visão de mundo e de sua inscrição
religiosa. A civilização surge quando os seres humanos se entendem iguais e decidem
conviver pacificamente. Se isso é assim, estamos ainda na antessala da
civilização e navegamos em plena barbárie. Esse cenário é dominante no mundo de
hoje, agravado ainda mais pela intrusão do Covid-19.Ele ganhou sua mais
perversa expressão pela cultura do capital,competitiva,pouco solidária,
individualista, materialista e sem nenhuma compaixão para com a natureza.
Neste
contexto vexaminoso duas alternativas nos podem salvar: a solidariedade e o
internacionalismo.
A solidariedade pertence à essência do humano, pois
se não tivesse havido um mínimo de solidariedade e de compaixão, ninguém de nós
estaria aqui falando destas coisas. Foi necessário que nossas mães nos tivessem
solidariamente acolhido, nos abraçado, alimentado e amado para podermos existir.
Sabemos pela bioantropologia que foi a solidariedade de nossas ancestrais
antropoides que se tornaram humanos e, com isso, civilizados, quando começaram
a trazer a comida ao grupo, repartirem-na solidariamente entre si e exercerem a
comensalidade. Esta ação continua ainda hoje, quando muitos grupos,
especialmente os Sem Terra, se mostraram solidários distribuindo dezenas de
toneladas de agro alimentos e muitas centenas de marmitas para saciar a fome de
milhares nas ruas e periferias de nossas cidades.
O internacionalismo acompanha a solidariedade.Ele
parece óbvio: se o problema é internacional,deveria haver também uma solução
internacionalmente consertada. Mas quem cuida do internacional? Cada país cuida
de sei mesmo como se não houvesse nada para além de suas fronteiras. Ocorre que
atualmente inauguramos a fase nova da história da Terra e da Humanidade: a fase
planetária, a da única Casa Comum. Os vírus não respeitam as fronteiras
nacionais. O Covid-19 atacou a Terra inteira e ameaça a todos os países
sem exceção. As soberanias mostraram-se obsoletas. Que seria dos velhinhos da
Itália, gravemente infectados pelo Covid-19, se não fosse a solidariedade de
Angela Merkel da Alemanha que salvou a grande maioria deles? Mas isso foi uma
exceção para mostrar que é pela superação do nacionalismo envelhecido em nome
do internacionalismo solidário que poderá ser encontrado um caminho de saída
para a nossa barbárie.
É nesta
perspectiva que consideramos inspiradora uma categoria fundamental, vinda da
África. Muito mais pobre que nós, ela é mais rica em solidariedade. Esta vem expressa pela palavra Ubuntu, que significa: eu só sou eu através de você.
O outro, portanto, é essencial para que eu exista enquanto humano e civilizado.
Inspirado pelo Ubuntu, o recém-falecido arcebispo
anglicano Desmond Tutu encontrou, para a África do Sul, uma chave para a
reconciliação entre brancos e negros, na Comissão da Verdade e da
Reconciliação.
Como
ilustração como o Ubuntu está enraizado na culturas africanas, consideremos
este pequeno testemunho: um viajante europeu e branco se extasiou com o
fato de que, sendo mais pobres que a maioria, os africanos eram menos
desiguais. Quis saber o porquê. Idealizou um teste. Viu um grupo de jovens
jogando futebol num campo cercado de árvores. Comprou um bela cesta de diversos
e coloridos frutos e a colocou no alto de um pequeno morro. Chamou os jovens e
lhes disse: “Lá no alto há uma cesta cheia de saborosos frutos. Vamos fazer uma
aposta: vocês se coloquem todos em fila e quando der o sinal, comecem
correr. Quem chegar primeiro lá no alto, ganhou a cesta de frutos e poderá
comer sozinho quanto quiser”.
Deu o
sinal de partida. Coisa curiosa: todos se deram as mãos e juntos correram para
o alto, onde estava a cesta. Começaram a saborear solidariamente os frutos.
O
europeu, estupefacto, perguntou: por que fizeram isso? Não era o primeiro a
chegar e poder comer sozinho os frutos? Todos gritaram unanimemente: Ubuntu! Ubuntu! E um jovem, um pouco mais idoso,
lhe explicou:“Como um de nós poderia ficar feliz sozinho se todos os demais
ficariam tristes?” E acrescentou:
“Meu
senhor, a palavra Ubuntu significa isso para nós: “Eu
só posso ser eu por meio do outro”. “Sem o outro eu não sou nada e ficaria
sempre sozinho. Sou quem sou porque sou através dos outros. Por isso que
repartimos tudo entre nós, colaboramos uns com os outros e assim ninguém fica
de fora e triste. Assim fizemos com a sua proposta. Comemos todos juntos. Todos
ganhamos a corrida e juntos desfrutamos dos bons frutos que nos trouxe.
Entendeu agora?
Este
pequeno relato é o contrário da cultura capitalista. Esta imagina que alguém é
tanto mais feliz quanto mais pode acumular individualmente e usufruir sozinho.
Por causa desta atitude reina a barbárie, há tanto egoísmo, falta de
generosidade e ausência de colaboração entre as pessoas. A alegria (falsa) é de
poucos ao lado da tristeza (verdadeira) de muitos.Para viver bem, em nossa
cultura, muitos têm que viver mal.
Entretanto,
por todas as partes na humanidade, estão fermentando grupos e movimentos que
ensaiam viver essa nova civilização da solidariedade entre os humanos e também
para com a natureza. Cremos que começou a construção da Arca de Noé. Ela nos
poderá salvar se o Universo e o Criador nos concederem o tempo necessário.Fora
da solidariedade e o do sentido internacionalista pereceremos em nossa
barbárie.
Leonardo
Boff é eco-teólogo e escreveu Covid-19, a Mãe Terra contra-ataca a humanidade,
Vozes 2020; Habitar a Terra: qual o caminho para fraternidade universal? Vozes
2121.
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