por
Frei Betto (*)
Se
há uma mulher que não podia ser considerada mero adereço do marido era Marisa
Letícia Lula da Silva. Ela não tinha a vocação política de Lula, mas sua
aguçada sensibilidade funcionava como um radar que lhe permitia captar o âmago
das pessoas e discernir as variáveis de cada situação.
Nascida
em São Bernardo do Campo, numa família de pequenos sitiantes, ela guardava a
firmeza de caráter de seus antepassados italianos. Comedida nas palavras, a
ponto de preferir não dar entrevistas, não fazia rodeios quando se tratava de
dizer o que pensava, doesse a quem doesse. Por isso não podia ser incluída
entre as tietes do marido. Nos palanques, preferia ficar atrás e não ao lado de
Lula. A admiração recíproca não impedia que, ao vê-lo retornar de uma maratona
de reuniões, às 3 da madrugada, ela o convocasse para criticar o desempenho
dele numa entrevista na TV ou compartilhar decisões domésticas.
Marisa
era, com certeza, a única pessoa que, no cara a cara, não corria o risco de se
deixar enredar pela lógica política do marido. Defensora intransigente de seu
próprio espaço, não chegava a ser o tipo de esposa que competia com o parceiro.
Sabia que seus papéis eram diferentes e complementares. Ninguém era aceito na
intimidade dos Silva sem passar pelo crivo dela, que sabia distinguir muito bem
quem eram os amigos do casal e quem eram os amigos de Lula.
Tanto
quanto Lula, Marisa conhecia as dificuldades da vida. Décima filha de Antônio
João Casa e Regina Rocco Casa, cresceu vendo o pai carregar a charrete de
verduras e legumes que ele plantava e vendia no mercado. Se o sítio era
pequeno, suficiente para assegurar a precária subsistência da família de onze
filhos, o coração dos Casa era grande o bastante para acolher os necessitados.
Dona Regineta – como era tratada sua mãe – ficou conhecida como benzedora em
São Bernardo do Campo pois, na falta de médicos e de recursos, muitas pessoas a
procuravam, especialmente quem padecia de bronquite.
A
filha estudou até a 7ª série. Ainda criança, viu-se obrigada a conciliar a escola
com o trabalho, empregando-se como babá na casa de um sobrinho de Portinari.
Aos 13 anos de idade, tornou-se operária na fábrica de chocolates Dulcora. Do
setor de embalagem Marisa foi promovida a coordenadora de seção antes de, aos
20 anos, trocar a Dulcora por um cargo na área de educação da prefeitura de São
Bernardo do Campo, onde trabalhou enquanto solteira.
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Em
1970, ela se casou com Marcos Cláudio dos Santos, motorista de caminhão. Seis
meses depois, ele morreu assassinado, quando dirigia o táxi do pai, deixando
Marisa grávida do filho Marcos, que Lula considera seu primogênito. Em 1973, ao
recorrer ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo para obter um
pecúlio deixado pelo marido, Marisa conheceu Lula. De fato, foi paquerada dentro
de um verdadeiro cerco estratégico montado pelo presidente do sindicato, que
ouvira falar de uma “lourinha muito bonita” que andava por ali. Lula tentou
convencê-la de que também era viúvo, sem que a moça acreditasse, até ver o
documento que ele, de propósito, deixara cair no chão. A primeira mulher de
Lula, Maria de Lourdes, morrera em 1971, com o filho que trazia no ventre, em
consequência de uma hepatite mal curada. Em maio de 1974, Lula e Marisa se
casaram. Da união nasceram os irmãos de Marcos: Fábio, Sandro e Luís Cláudio.
Nos primeiros anos de casada, Marisa não gostava de
política. O progressivo comprometimento de Lula com atividades sindicais
alterava a rotina da casa. Obrigada a levantar cedo para despachar as crianças
para a escola, ela esperava o marido regressar de reuniões que se prolongavam
madrugada adentro. No fogão, a comida pronta para ser requentada, já que Lula
prefere não comer em restaurantes.
Depois
de deitar os filhos, ela acompanhava as telenovelas sem entusiasmo. E, com
razão, se queixava da difícil tarefa de atender a mais de cem telefonemas por
dia, muitas vezes sem conseguir convencer os interlocutores de que ela não
controlava a agenda do marido e, muito menos, o que ele pensava do último
pronunciamento de um ministro.
Em
abril de 1980, ela passou pela prova de fogo, quando Lula esteve preso no DEOPS
de São Paulo, devido à greve de 41 dias. Preocupada com a segurança dele,
sempre fez questão de abrir a porta quando estranhos batiam, evitando expor o
marido. No mesmo ano, fez o curso de Introdução à Política Brasileira,
promovido pela Pastoral Operária de São Bernardo do Campo. Filiada ao Partido
dos Trabalhadores, abriu sua casa para as reuniões do núcleo petista que se
organizara no bairro Assunção, onde moravam. O engajamento da mulher levou Lula
a participar mais diretamente das tarefas domésticas. Mas era ela quem cuidava
das finanças da casa.
Dela dependia também a logística pessoal de Lula,
cujas roupas era ela quem comprava geralmente. Como ele costumava andar de
bolsos vazios, sequer trazendo consigo a carteira de identidade, da bolsa de
Marisa surgiam o talão de cheques e a caneta com a qual Lula dava autógrafos.
Durante as campanhas presidenciais, Marisa sempre levava, nas
viagens, uma coleção de camisas para que, após cada comício, ele pudesse
trocá-las.
Embora
Marisa preferisse, em política, o papel de assessora mais íntima do marido e
não gostasse de fazer discursos e nem mesmo ser o centro das atenções, ela não
dispensava a oportunidade de participar de conversas políticas.
Independentemente de quem fosse o interlocutor, Lula jamais pedia a Marisa que
se retirasse, exceto para buscar um café. No fogão, ela preferia o trivial:
arroz, feijão, bife e salada de alface com tomate, embora o seu prato predileto
fosse camarões e um bom copo de vinho. Para quem chegava, havia sempre uma
xícara de café. Sair sem aceitá-la era considerado quase uma ofensa. E ela se
comprazia em ler toda a correspondência que o marido recebia nos comícios, bem
como em distribuir estrelinhas do Partido às crianças.
Devota do Sagrado Coração de Jesus, cuja folhinha
jamais dispensava, a ex-Filha de Maria tinha, como Lula, a impressão de que
Deus comandava os seus passos. Mas, por curiosidade, gostava de ler seu
horóscopo nos jornais.
Habilidosa
na arte do silk-screen, Marisa fez a primeira bandeira do PT, num tecido
vermelho trazido da Itália. Em 1981, montou em casa uma pequena oficina para
estampar camisetas com símbolos do Partido, inclusive criações de Henfil. Para
a campanha de Lula a deputado federal, em 1986, ela chegou a estampar cerca de
vinte mil camisetas, vendidas para angariar fundos. Ciosa de sua privacidade
familiar virava uma fera quando a imprensa tentava entrar pela porta de sua
casa ou incluir seus filhos no noticiário. Em tais situações, só o cuidado das
plantas era capaz de acalmá-la.
Avessa
a protocolos, gostava mesmo era de ficar entre amigos, cercada de muita planta
e água, em qualquer lugar em que os filhos pudessem se divertir, livres
das normas de segurança. Um bom jogo de buraco, o papo solto, o marido de
bermudas ao seu lado e o telefone desligado – era o que bastava para deixá-la
em paz.
Frei
Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre
outros livros.
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