Por
Marcelo Barros
Nessa semana, todo o Brasil já está em
ritmo de Carnaval. Em muitas cidades do litoral e do interior, as pessoas esquecem
dores e angústias do cotidiano através da dança, das brincadeiras e da alegria
do Carnaval. Há quem veja nisso mera alienação e alguns até condenam o
mundanismo e julgam o Carnaval como mal. Sem dúvida, o Capitalismo faz de tudo
mercadoria. Cada vez fica mais difícil brincar, dançar e se fantasiar
gratuitamente. Tudo é comercial. O Carnaval se torna o momento do uso exagerado
de bebidas e mesmo de drogas. Tudo isso cria um circulo vicioso com a violência
urbana que explode em alguns fenômenos de massa não bem canalizados. No
entanto, apesar desses problemas, toda festa, mesmo a mais aparentemente
mundana, reúne pessoas em uma expressão de alegria. Por isso, tem uma dimensão
nobre e mesmo espiritual. O que caracteriza a festa é a liberdade de brincar, o
direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão, através de uma
comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo e espírito.
Já nos anos 50, Dorival Caymmi resumia o
sentimento popular ao cantar: "Quem não gosta de samba, bom sujeito não é.
É ruim da cabeça, ou doente do pé...".
Os
grupos religiosos que pregam contra o Carnaval e os que inventam encontros
espirituais para afastar as pessoas das brincadeiras de Momo podem usar como
pretextos o medo do pecado e os problemas como desordem moral, bebedeiras e
drogas que, realmente, existem em todos os eventos de massa, como shows e
manifestações coletivas. No entanto, essas pessoas já eram contrárias aos
festejos desses dias, mesmo em épocas nas quais o Carnaval era mais espontâneo
e inocente. O que está por trás dessa rejeição moralista é o pensamento
neoplatônico que opõe corpo e espírito. Essa filosofia pagã incorporou-se de
tal modo no Cristianismo que as pessoas esquecem que, segundo o quarto
evangelho, Jesus começa a dar sinais de sua missão em uma grande festa de
casamento em Caná da Galileia e chega a transformar água em vinho para que a
alegria dos convidados pudesse ser completa (Cf. Jo 2, 1- 11). Diversas vezes,
nos evangelhos, Jesus diz que veio para que todos tenham alegria e vida
profundamente vivida (Jo 10, 10). Ele se queixa de sua geração que parece com
pessoas que, mesmo ao som da música e da dança, ficam indiferentes (Lc 7, 31-
32).
Nos anos 70, na semana antes do Carnaval,
em uma crônica radiofônica, dom Helder Camara, então arcebispo de Olinda e
Recife, afirmava: "Carnaval é a alegria popular. Direi mesmo,
uma das raras alegrias que ainda sobram para a minha gente querida. Peca-se
muito no carnaval? Não sei o que pesa mais diante de Deus: se excessos, aqui e
ali, cometidos por foliões, ou farisaísmo e falta de caridade por parte de quem
se julga melhor e mais santo por não brincar o carnaval. (...) Brinque meu povo
querido! Minha gente queridíssima. É verdade que quarta-feira a luta recomeça.
Mas, ao menos, se pôs um pouco de sonho na realidade dura da vida!" ("Um olhar sobre a cidade", 01/ 02/ 1975).
Naqueles tempos, Chico Buarque compôs a
melodia para o filme “Quando o Carnaval chegar”, uma comédia musical de Cacá
Diegues que tomava o Carnaval como parábola da festa da libertação. Chico, Nara
Leão, Maria Bethânia e Gal saíam pelas ruas cantando: "Quem me vê assim,
parado e distante, até parece que nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o
Carnaval chegar". Tratava-se do Carnaval da libertação da ditadura militar
e das opressões que vinham daquela estrutura autoritária de injustiças.
Atualmente, o império não mais precisa dos militares para garantir, em
toda a América Latina, governos ilegítimos e uma forte ditadura econômica,
disfarçada sob as aparências de democracia formal. Por isso, a organização do
povo nos blocos de Carnaval, a capacidade de coordenar multidões sob o som de
uma marcha ou de um frevo de rua manifesta a capacidade do nosso povo de se
organizar social e politicamente. superar os preconceitos e mentiras,
diariamente jogados por meios de comunicação inescrupulosos e vendidos ao
império. O Carnaval pode ser sim uma parábola e instrumento para superarmos as
ondas de ódio e intolerância propostas pela mídia dominante e lutarmos
pacificamente por maior igualdade social e por uma justiça que signifique
verdadeira libertação para todo o povo. Com outras letras e outras melodias, em
ritmos mais novos, continuamos a cantar o correspondente à velha música do
Chico: “Quem vê assim, tão parado e distante, parece que eu
nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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