por Eduardo Hoornaert
Neste momento estão se formando, no alto oceano das
tendências históricas, diversos tsumanis que sacudirão fortemente as praias da
leitura bíblica num futuro ainda não definido. Desde já constituem uma ameaça à
leitura tradicional da Bíblia, tal qual é praticada em inúmeras comunidades
cristãs ao redor do mundo. São agitações de diversos tipos, como aquelas
provenientes da exacerbação de um tipo de leitura bíblica longamente praticado
pelas igrejas históricas: a leitura fundamentalista. Há igualmente agitações
que provêm de estudos bíblicos científicos e são essas que pretendo comentar
aqui. De qualquer modo, a curto ou médio prazo, a questão de uma leitura
bíblica em consonância com os tempos em que vivemos há de figurar na agenda
daquelas igrejas que se preocupam com o modo em que seus fiéis leem a Bíblia.
Proponho apresentar aqui duas ‘ondas’ do ‘tsunami
científico’, uma que atinge os campos da leitura do Antigo Testamento e outra
que toca as praias do Novo Testamento. Ambas são formadas pela conjugação de
duas ciências que tiveram intensa evolução nos últimos cinquenta anos (do
Concílio Vaticano II para cá): a ‘nova arqueologia bíblica’ e a ciência
linguística (veja Manfredo de Oliveira, Reviravolta linguística, Loyola, São
Paulo, 1996) que está reformulando nossos conhecimentos sobre Jesus de Nazaré,
por exemplo. Vejamos esses dois pontos.
1. O Antigo
Testamento: Israel é realmente o Povo Eleito de Deus?
Até uns cinquenta anos atrás, as escavações
realizadas em sítios mencionados na Bíblia serviam basicamente para provar que
‘a Bíblia tinha razão’ (como reza o título do famoso livro de Werner Keller,
1956). Elas costumavam ser financiadas por instituições religiosas ou pelo
Estado de Israel. Mas nos últimos anos, a arqueologia bíblica ganhou autonomia:
é a chamada ‘nova arqueologia’, que encontra uma de suas expressões mais
conhecidas no livro ‘A Bíblia não tinha razão’, do arqueólogo judeu Israel
Finkelstein (Editora Girafa de São Paulo, 2003). O título original do livro
reza: ‘A Bíblia desenterrada’. A terra, exaustivamente escavada (por vezes em
mais de dez estratos, como no caso dos sítios arqueológicos em Jericó, por
exemplo), nos ensina a história dos povos bíblicos. Sua autoridade excede a dos
textos escritos por não ficar sujeita a imaginações. Há de se acrescentar a
capacidade sempre maior de se entender línguas antigas desde muito
desaparecidas. Quando se encontram ‘óstracos’ (pedaços de antigos vasos ou
jarros quebrados) com palavras gravadas, a agitação em todos os campos de
escavação é geral. Esses pequenos pedaços de barro ganham uma autoridade
impressionante. Essa nova autoridade ‘arqueológica’ é um tsunami, pois em
muitos casos contradiz o que se lê na Bíblia e isso faz com que Finkelstein
chega a declarar: ‘a Bíblia é um magnífico produto da imaginação humana’. Não
tem nada a ver com a história real.
Dou uns exemplos. A Bíblia conta, no Livro
Êxodo, que, numa data indeterminada entre os séculos XV e XIII aC, um
contingente enorme de hebreus fugitivos da escravidão no Egito (aproximadamente
600.000 pessoas) teria cruzado o deserto do Sinai durante quarenta anos, para
finalmente alcançar a Terra que lhes fora prometida por Ihwh, a terra de Canaã.
Os canaanitas, antigos habitantes, teriam sido exterminados ou subjugados, a
cidade de Jericó conquistada, assim como povoados mencionados na Bíblia, como
Bersheba e Edom. Ora, entre os documentos (escritos ou gravados em pedra) do
Egito, não se encontra nenhuma referência a alguma transmigração populacional
dessa amplitude. E vale lembrar que as crônicas do antigo Egito são renomadas
pela cobertura exaustiva de sua história. Como não se encontrou no deserto do
Sinai nenhum traço da passagem de uma multidão tão grande (restos de
acampamentos, etc.)? E como entender que as terras escavadas em Jericó, Besheba
e Edom (jarros, vasos, ‘óstracos’, estatuetas, objetos de uso doméstico e
agrário) só revelam sinais de épocas posteriores àquelas assinaladas em textos
bíblicos?
O que acabo de escrever é particularmente
importante em relação aos relatos bíblicos acerca dos reinados de Davi e
Salomão, que costumam ser datados por volta do ano 1000. Ora, os primeiros
testemunhos arqueológicos de uma grande monarquia se referem aos anos 900 a
800, pelo menos cem anos depois. No tempo de Davi, Jerusalém era uma pequena
aldeia sem importância e seu modesto santuário era igual a muitos outros da
época. A grandeza vem mais tarde, durante a dinastia dos Anri e particularmente
no tempo de Ezequias (726-697). Não se trata aqui de duvidar da existência de
Davi e Salomão, mas de investigar suas reais jurisdições. Ora, a crer os
resultados de escavações, elas foram provavelmente muito restritas. Em vez de
um grande reino unido (o Israel dos textos), havia dois reinos, um no Norte
(chamado Israel) e um no Sul (chamado Judá). A exaltação de um Israel unido e
poderoso, com seu Templo em Jerusalém, no reinado de Davi, é uma construção ao
mesmo tempo teológica (Ihwh reina) e política (Davi reina), uma construção
literária dirigida contra o poder estrangeiro, notadamente o poder da Assíria.
Na medida em que a saga de Davi foi se espalhando, muitos vieram morar em
Jerusalém para viver perto do grande santuário, mas tiveram de pagar um preço
alto: aceitar a dinastia davídica autoritária e a soberania sacerdotal do
Templo de Jerusalém.
Seria possível multiplicar os exemplos. Basta dizer
que, com a nova arqueologia, cai o mito do ‘povo eleito’, de um ‘povo de Deus’
diferente dos demais, guiado por Ihwh. Cai o mito de Abraão e dos patriarcas, a
história da conquista de Canaã pelos Israelitas. Aparece um povo hebreu comum,
cuja história é igual à dos demais povos da região e da época. Os israelitas
não vieram de fora, sempre viveram na Palestina, não são um povo imigrante,
liderado por Ihwh. Como os demais povos, sua história é feita do chão de cada
dia, da luta pela sobrevivência. Com isso estamos fora do ‘grande relato’, que
se inicia com a história de Adão e Eva e só termina com a ‘consumação dos
séculos’, fora do universo das ‘grandes verdades’.
Eis como um estudioso insuspeito, o jesuíta francês
Joseph Moingt, se expressa: ‘obras muito recentes colocaram em questão o
conjunto da historiografia bíblica e autores muito sérios falam abertamente da
invenção da Bíblia, incluso do povo judeu’ (Moingt, J., Croire quand même, Temps Présent, Paris, 2011. Veja também, do
mesmo escritor : Faire bouger l'Église catholique, Desclée de Brouwer,
Paris, 2012).
2. O Novo Testamento: Jesus de Nazaré é realmente o
Ungido de Deus?
Eu mesmo trabalhei em detalhes uma análise da
figura de Jesus em meu livro ‘Em busca de Jesus de Nazaré: uma análise
literária’, publicado pela Editora Paulus de São Paulo em 2016. Aqui apenas assinalo
o contraste entre o Jesus que nos é apresentado tradicionalmente e o Jesus que
nos vem, ‘como um tsunami’, a derrubar verdades longamente aceitas. Recorro ao
artigo ‘Un nuevo paradigma em arqueologia?’, da autoria de José Maria Vigil
(Revista Alternativas, Manágua, 22, n. 49, janeiro-junho 2016, 61-90).
O Jesus tradicional é ‘Deus mesmo em pessoa, que,
na plenitude dos tempos, se encarnou no povo eleito por Deus desde Abraão, para
levar à plenitude a revelação realizada na Primeira Aliança entre Deus e seu
povo. Ao longo de sua vida pública, esse Messias, Ungido por Deus, pregou o
evangelho da salvação e fundou pessoalmente a Igreja, estabelecendo-a sobre
Pedro e os apóstolos. Executado pelos romanos, ressuscitou no terceiro dia,
conforme as Escrituras, como tinha predito, e depois subiu ao céu, de onde
enviou o Espírito Santo em Pentecostes, que cuida da veracidade e do
crescimento da Igreja, que goza da promessa que as portas do inferno não
prevalecerão sobre ela, até o final dos tempos’ (art. cit. 74).
Que contraste com o que uma análise literária dos
evangelhos nos informa acerca de Jesus! Podemos resumir a nova imagem de Jesus
nas seguintes palavras: ‘Jesus não se proclamou a si mesmo como Messias
(Cristo) e até recusou que o chamassem como tal. Nunca pensou ser Deus, igual
ao Pai do Céu, da forma em que o Evangelho tardio de João (por volta do ano
100) o apresenta. Jesus não pregou a si mesmo, mas falou do Reino de Deus e do
empoderamento concedido por Deus aos menos afortunados, os empobrecidos, os
impuros, os que eram social e religiosamente marginalizados. Conclamou a uma
conversão radical no sentido de uma vida de justiça e misericórdia’ (art. cit.
69).
3. Esse tsunami científico é maléfico ou benéfico?
O impacto do tsunami científico sobre a leitura
bíblica só pode ser avaliado corretamente quando se toma em conta o tsunami
fundamentalista. É contra esse último tsunami que as igrejas têm de erguer
urgentemente um dique seguro, pois ele ameaça inundar completamente os campos
cristãos. Em contraste, o tsunami científico pode ser benéfico e até saudável.
Claro, a leitura científica da Bíblia é de difícil assimilação, pois ela dá a
impressão de derrubar santuários onde nos sentíamos tão bem (seguindo o exemplo
de nossos pais) e de passar por cima de ideias que nos foram transmitidas com
tanto carinho. Quando a ciência nos diz que a Bíblia ‘não tem razão’, temos de
recordar que aqui não se trata de ‘ter razão’, mas de ‘ter alma, ter espírito’.
Uma boa reação diante do tsunami científico me parece ser formulada por Joseph
Moingt quando escreve ‘crer mesmo assim’ (‘croire quand même’). É verdade: a
Bíblia é uma construção imaginária, a maior e a mais longeva de todas as
construções imaginárias da cultura ocidental. Atravessou os séculos e perdura
até hoje, não por causa de seu valor histórico, mas pelos valores éticos que
expressa: o amor ao próximo, o perdão, o acolhimento, a fraternidade, a
misericórdia, a fé, a esperança, o universalismo, a sensibilidade pelos marginalizados
e doentes. Há, decerto, passagens na Bíblia que contradizem essas posturas.
Pois a Bíblia não é palavra de Deus, mas palavra humana acerca de Deus
(Schillebeeckx). Ela participa da incongruência e provisoriedade inerentes a
toda palavra humana. Mas não se pode deixar de admirar a fé consistente que
perpassa a literatura bíblica. Há quem situa a redação da Bíblia numa época (o
século VII aC) em que o mundo inteiro parecia sacudido por impulsos
humanitários, agitado por um fermento espiritual poderoso. É impressionante
verificar que figuras como Confúcio na China (550-480 aC), Buda na Índia
(560-480), Zaratustra no Irã (final do século VIII), os filósofos iônios na
Grécia e os grandes profetas hebreus (Ezequiel, Isaías, Jeremias) surgem
aproximadamente na mesma época. Há quem fala aqui em ‘época axial’ e sugere que
nós estejamos atualmente passando por uma nova ‘época axial’, em que todas as
verdades recebidas são questionadas e aparecem novos impulsos (veja Zygmunt
Bauman com o conceito de ‘liquidez’). Não podemos senão ficar
impressionadas(os) pela criatividade espiritual do povo hebreu que conseguiu
expressar por narrativas originais questões e desafios que nos atingem hoje e
dar-lhes um cunho ético inconfundível, diferente da literatura dinástica,
guerreira e violenta, endêmica em tantas culturas. Nenhuma literatura fala dos
pobres como fala a Bíblia. Isso, por si só, já basta para ‘crer apesar de
tudo’.
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