No Rio de Janeiro, a Portela, escola de samba, campeã do Carnaval de
2017, ganhou o troféu de vencedora com o samba-enredo "Foi um rio que
passou em minha vida. O meu coração se deixou levar". A partir dessa
homenagem a Paulinho da Viola, autor do samba clássico que tem esse título, a
escola falou dos rios do Brasil e do encanto de suas águas e da necessidade de
defendermos as bacias hídricas, hoje ameaçadas. De fato, a imagem usada pelo
clássico samba-canção pode se tornar uma verdade literal a ser dita por
brasileiros de norte a sul do país: Se não fizermos algo para mudar a
realidade, os rios brasileiros passarão. Deixarão de ser reais. Segundo se
conta, há 300 anos, pescadores encontraram uma imagem de Nossa Senhora
Aparecida no fundo do rio Pa raíba do Sul. Hoje esse rio está tão seco e
esquecido que não tem pescadores e nem fundo para esconder nenhuma imagem
sagrada. O Rio São Francisco, antigamente rio da integração nacional, hoje está
moribundo e resistindo com dificuldade a mais de cinco anos de seca. Desse
modo, estão praticamente todos os rios brasileiros.
Nessa quarta-feira, 22, a ONU celebra mais um dia internacional da água.
Em vários países, devido à urgência do problema, as reflexões e eventos sobre
esse dia ocupam toda essa semana. De fato, estamos em situação de risco. O
sistema de vida no planeta Terra está ameaçado e a água se torna o bem mais
precioso. Hoje, 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável, e 2,4
bilhão de pessoas não contam com saneamento básico. Cada ano, seis milhões de
pobres, dos quais quatro milhões de crianças, morrem de enfermidades ligadas a
águas contaminadas. Até o ano 2025, conforme um estudo da ONU, esse problema
afetará metade da humanidade.
Há
diversos motivos para esta crise. O planeta Terra tem 75% de sua superfície
ocupada por oceanos, mas a água doce representa apenas 2,5% deste total. No
último século, a população mundial aumentou muito e na maioria dos países, a
urbanização se fez de modo descontrolado. Toda a população da humanidade se
concentra ao redor das 217 bacias fluviais internacionais que irrigam o
planeta. Por causa do crescimento demográfico e da poluição, nos últimos 30
anos, os recursos hídricos foram reduzidos em 40%. Da água disponível que
tínhamos, a humanidade acabou com 5000 Km2. E muitos, ainda se comportam como
se a água fosse um bem inesgotável. Usam os recursos hídricos de modo irresponsável
e injusto.
A água é um recurso natural limitado e pode acabar. Tem valor econômico
e competitivo no mercado. Não pode ser desperdiçada (cada vez que se toma um
banho com chuveiro aberto durante todo o tempo desperdiça-se mais água do que
se usa). Quase todos os países atualizam legislações sobre a água. Em vários
lugares, por causa da água, há conflitos entre povos. Há quem diga que as
guerras do futuro serão provocadas pela carência ou pelo domínio da água.
Organizações não Governamentais e movimentos populares defendem que a água não
deve ser mercantilizada – ela é mais do que uma mercadoria. Mais grave ainda
seria privatizá-la, o que está ocorrendo em vários países, inclusive em várias
regiões do Brasil.
A Pastoral da Terra declara: “A água é constitutiva do ser humano. É
necessária à vida como um todo e ao meio ambiente. Por isso, ela é um direito
natural, patrimônio da humanidade, dádiva divina e não obra humana. Por isso,
ela não pode ser reduzida a uma mercadoria e a um bem particular. Nenhum ser
humano pode arrogar a si o poder de negar a qualquer semelhante ou ser vivo
este bem essencial à vida”.
O cuidado
com a água tem, então, motivos sociais e econômicos. Mas, a nossa relação com a
água só mudará se aprendermos com as culturas religiosas antigas a nos
relacionarmos com a terra e com a água de forma amorosa e espiritual. A Bíblia
fala da água como símbolo do Espírito de Deus que derrama sobre o universo uma
vida nova. Cuidar bem da água e defender os rios e fontes é uma forma de
reconhecer a presença divina no universo, defender a vida e participar da
Páscoa pela qual Deus “renova todas as coisas” (Ap 21, 5)[1]. No sul do Chile, Dom Luiz
Infanti, bispo de Iassen, escreveu uma carta cujo título, nós todos podemos
orar parafraseando o Pai Nosso: "A água nossa de cada dia, nos dai
hoje".
Marcelo
Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor
nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de
base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT
(Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros
publicados no Brasil e em outros países.
[1] - Quem quiser aprofundar mais este assunto, leia o livro: MARCELO
BARROS, O Espírito vem pelas Águas, Ed. Loyola, Rede,
2003.
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