Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Talvez uma das palavras mais importantes nos dias
que vivemos seja liberdade. Todos a usam, todos a desejam, todos
pensam vivê-la. E, no entanto, é talvez uma das palavras que mais se
presta a equívocos.
Iniciamos o tempo da Quaresma. Tempo de
conversão, de voltar às raízes da opção fundamental. Tempo de apalpar de
novo com paixão o sentido da vida escolhido e, às vezes, desgastado, esquecido,
negligenciado. Tempo de, mais que nada, exercitar a liberdade e torná-la
opção vital e vivida, superando a cada passo ambiguidades e distorções.
Diante de uma multiplicidade de opções, somos
livres para escolher. Livres de uma liberdade que se testa na clivagem e
no laboratório da vida individual de cada um. Trata-se de uma liberdade que
depende da multiplicidade de possibilidades. E que vive e se multiplica
quanto mais essa multiplicidade de possibilidades é mantida. Por isso,
paradoxalmente, pode tornar-se uma liberdade vazia e enganosa, uma vez que não
se tem a coragem de colocar uma possibilidade acima das outras: escolher uma
significa rejeitar outras e isso não entra na dinâmica do jogo do consumo e da
volatilidade de nossa sociedade. Em outras palavras, selecionar, rejeitar,
cancelar, nada disso está previsto como parte do processo.
Como diz
lapidarmente Bauman, “como no caso dos signos, que têm chances de comunicar-se
na medida em que permaneçam livres de significados, a essência da escolha livre
é o esforço para abolir a escolha.”
O ímpeto de um desejo de consumo estimulado por um
raio de oferta sempre maior torna então a autogratificação, a satisfação,
impossíveis. Decidir começa a se tornar algo extremamente difícil e quase
impossível porque significa renunciar a outras possibilidades para escolher
uma; ou escolher uma para ser colocada acima das outras. Vivemos escravizados
sob uma “tirania de possibilidades” que nos acossa constantemente,
multiplicando as ofertas diante de nós, sem deixar-nos espaço de liberdade para
escolher, dizer que sim ou que não.
Muitas vezes queremos dizer sim sem dizer
não, deixando todas as opções em aberto. Isso acontece no ato de
consumir bens perecíveis ou voláteis, mas também nas escolhas afetivas e nas
opções de vida. Em um momento diz-se sim ao casamento, ou à entrada em um
estado de vida, ou a uma profissão, a uma vocação. Ou à maternidade ou à
paternidade. Mas deixa-se interiormente a porta aberta para outras
opções que virão mais tarde. Todos os relacionamentos, empregos, casas,
carreiras, vocações, parecem ter datas de validade e prazos de vencimento.
Não é à toa que a etimologia das
palavras “decidir” e “ decisão” fala de corte, separação. Toda escolha que
implica uma decisão tem que apreciar uma pluralidade de possibilidades e
caminhos e “cindir”, cortar as restantes para permanecer com uma. Há que
separar cortando, ainda que a duros golpes para que haja realmente escolha e
decisão. Talvez seja preciso cortar na carne. Pois que seja, se assim o
pede a fidelidade a uma liberdade que abre sempre mais para um horizonte sempre
mais amplo.
Às vezes acreditamos que decidimos bem, mas devido a uma série de correntes que
se movem dentro de nós e nos arrastam, nossos caminhos podem ser desviados para
portos que não havíamos escolhido. E aqui estão em jogo não apenas as grandes
opções, mas a qualidade de nossas vidas cotidianas, que podem inadvertidamente
ser desvalorizadas pela dinâmica da cultura que se instalou em nós.
Como diz K. Gergen, “nossa pessoa, nosso “eu” saturado de informações, de
propostas de consumo, de possibilidades diferentes de organizar a vida, de
relações reais ou virtuais, de ofertas de todos os estilos, vai se convertendo
em um “eu “colonizado. Quando se nos apresenta uma situação nova, já
temos uma infinidade de respostas possíveis arquivadas dentro de nós”. E o
resultado é que não conseguimos exercitar plenamente a nossa liberdade.
A Quaresma deseja chamar-nos a isso, facilitar-nos
esse tempo qualitativo de exercício da liberdade. Enquanto caminhamos em
direção à Páscoa do Senhor, somos chamados a olhar nossos hábitos, nossas escolhas,
nossas decisões. E a revê-las em um exercício de honestidade, iluminado
pela fé e pelo amor.
Que esse tempo nos faça mais livres. E mais
dispostos a exercitar essa liberdade. Santa Quaresma para todos e todas.
Maria Clara
Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A
teóloga é autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
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