Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Filme para ser contemplado e não tanto visto como divertimento,Silêncio,
de Martin Scorsese, tem longa duração. São três horas de um belo trabalho
do experiente cineasta que, católico, quis fazer uma avant première do
filme em Roma, na cúria jesuíta. Ao final, nos créditos, como assinatura,
aparece a dedicatória da obra aos católicos japoneses e seus pastores. E
as letras A.M.D.G. (Ad maiorem Dei gloriam), lema dos jesuítas, apõem o selo
final.
Trata-se, no dizer do próprio Scorsese, de um filme sobre a fé. É com a fé –
experiência facultada apenas ao ser humano – que o diretor dialoga, debate e se
debate. A experiência de crer dentro de uma matriz – a cristã católica –
e uma instituição – a Igreja Católica Romana – em um país onde impera outra
religião é acompanhada pela câmera de Scorsese com atenção apaixonada e
precisão quase obsessiva.
Neste longo itinerário emergem todos os temas – antigos e tão absolutamente
atuais – que inquietam crentes e não crentes ainda hoje. Pois, fazendo ou
não a experiência da fé, é inegável que a questão da religião, da
espiritualidade, da experiência de Deus jamais deixou de ser fundamental para o
ser humano. Seja para aderir ou combater. Afirmando, confessando ou
negando, o ser humano deseja e busca o Sentido da vida e embutido neste desejo
e nesta busca está o Rosto desejado d´Aquele que a tudo pode envolver com seu
poder e seu amor e que todas as religiões afirmam que pode ser encontrado no
mundo.
Porém, o que acontece quando esse Deus se cala em vez de fazer ressoar uma
Palavra de vida e salvação? O que se sente quando esse Deus esconde seu
rosto, deixando os que o buscam entregues ao vazio e à desesperança? Como
viver, como sobreviver quando o Senhor do Universo deixa sem respostas as mais
profundas e urgentes perguntas humanas?
O filme trata disso e de muito mais. Trata da questão da fé que busca a
Verdade. E que em certa medida crê já havê-la encontrado. E que se depara
com o fato um tanto desnorteador de que a Verdade pode ser plural ou pelo menos
apresentar-se com rostos diversos. E que os que a buscam por outros
caminhos e com outra linguagem podem não estar perdidos, ou condenados, ou
simplesmente equivocados.
Toda a questão tão atual do diálogo entre as religiões é muito viva no filme de
Scorsese que, no entanto, se passa na fronteira entre os séculos XVI e XVII. As
questões ali levantadas são situadas em um tempo e um espaço, mas são de sempre
e de todos os tempos e espaços. Como de sempre é o ardor missionário que
se dirige a latitudes longínquas para ali anunciar o Evangelho e se depara com
resistências. Algumas destas tomam a forma da violência e da
crueldade. Outras se apresentam como reflexões pensadas, discernidas e
feitas vida e compromisso.
O filme é pontuado pelo itinerário espiritual que é constitutivo da identidade
dos jesuítas. Tanto dos dois portugueses personagens do romance de
Shusaku Endo que Scorsese transporta à tela como de todos os membros da
Companhia de Jesus desde sua fundação pelo basco Inácio de Loyola. Os
Exercícios Espirituais, experiência que configura aqueles que se sentem
chamados a ingressar na ordem missionária mais famosa da história do
Catolicismo, se fazem sensíveis e eloquentes ao longo da trama.
Scorsese, ao que parece, fez a experiência que Inácio propõe aos que seguem seu
carisma. Nota-se inclusive que conhece bem seu percurso, suas exigências e
marcos principais. Aos jesuítas que partiam em missão em país estranho e muitas
vezes hostil, a espiritualidade que emana dos Exercícios ajudava a não perder o
rumo, o objetivo, a razão mesma da existência, da vocação e de estar longe de
todas as referências em nome da fé e da missão.
Tudo parece muito claro aos dois jovens jesuítas que, no entanto, são
surpreendidos em seu idealismo e sua jovem vocação por algo que se revela uma
imensa incógnita: o sofrimento humano e o aparente silêncio de Deus diante
dele. Com essa torturante pergunta se vão debater e encontrar rumos e fins
diferentes. A mesma pergunta, com igual grau de gravidade e peso, foi
levantada e pronunciada séculos depois, por ocasião do holocausto nazista.
Onde está Deus? Por que se cala? Como é possível falar dEle e pronunciar
Seu nome diante de tanto sofrimento absurdo e aparentemente sem nenhum sentido?
O gênio do cineasta ítalo-americano – seguindo a inspiração do escritor japonês
- vai perseguir a questão e suportar seu peso sem procurar soluções
fáceis. O caminho não necessariamente desemboca em uma resposta que satisfaz a
razão. Mas andar por esse caminho se torna possível e carregado de
sentido se a fé move as mentes e os corações sem deixar de lado a razão.
Quando a razão esbarra em seus limites, a fé prossegue o caminho e a busca. E o
espectador é delicada e gentilmente convidado a entrar neste percurso.
Sem dúvida, um grande filme. E uma boa oportunidade para mergulhar mais
fundo na Quaresma que hoje vivemos.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O
mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”,
Editora Rocco.
Copyright 2017 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER –
Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação,
eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário