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segunda-feira, 20 de março de 2017

SILÊNCIO: MARTIN SCORSESE E A QUESTÃO DA FÉ



Por  Maria Clara Lucchetti Bingemer


            Filme para ser contemplado e não tanto visto como divertimento,Silêncio, de Martin Scorsese, tem longa duração.  São três horas de um belo trabalho do experiente cineasta que, católico, quis fazer uma avant première do filme em Roma, na cúria jesuíta.  Ao final, nos créditos, como assinatura, aparece a dedicatória da obra aos católicos japoneses e seus pastores.  E as letras A.M.D.G. (Ad maiorem Dei gloriam), lema dos jesuítas, apõem o selo final.
            Trata-se, no dizer do próprio Scorsese, de um filme sobre a fé. É com a fé – experiência facultada apenas ao ser humano – que o diretor dialoga, debate e se debate.  A experiência de crer dentro de uma matriz – a cristã católica – e uma instituição – a Igreja Católica Romana – em um país onde impera outra religião é acompanhada pela câmera de Scorsese com atenção apaixonada e precisão quase obsessiva. 
            Neste longo itinerário emergem todos os temas – antigos e tão absolutamente atuais – que inquietam crentes e não crentes ainda hoje.  Pois, fazendo ou não a experiência da fé, é inegável que a questão da religião, da espiritualidade, da experiência de Deus jamais deixou de ser fundamental para o ser humano.  Seja para aderir ou combater.  Afirmando, confessando ou negando, o ser humano deseja e busca o Sentido da vida e embutido neste desejo e nesta busca está o Rosto desejado d´Aquele que a tudo pode envolver com seu poder e seu amor e que todas as religiões afirmam que pode ser encontrado no mundo.
            Porém, o que acontece quando esse Deus se cala em vez de fazer ressoar uma Palavra de vida e salvação?  O que se sente quando esse Deus esconde seu rosto, deixando os que o buscam entregues ao vazio e à desesperança?  Como viver, como sobreviver quando o Senhor do Universo deixa sem respostas as mais profundas e urgentes perguntas humanas?
            O filme trata disso e de muito mais.  Trata da questão da fé que busca a Verdade. E que em certa medida crê já havê-la encontrado.  E que se depara com o fato um tanto desnorteador de que a Verdade pode ser plural ou pelo menos apresentar-se com rostos diversos.  E que os que a buscam por outros caminhos e com outra linguagem podem não estar perdidos, ou condenados, ou simplesmente equivocados.
            Toda a questão tão atual do diálogo entre as religiões é muito viva no filme de Scorsese que, no entanto, se passa na fronteira entre os séculos XVI e XVII. As questões ali levantadas são situadas em um tempo e um espaço, mas são de sempre e de todos os tempos e espaços.  Como de sempre é o ardor missionário que se dirige a latitudes longínquas para ali anunciar o Evangelho e se depara com resistências.  Algumas destas tomam a forma da violência e da crueldade.  Outras se apresentam como reflexões pensadas, discernidas e feitas vida e compromisso.
            O filme é pontuado pelo itinerário espiritual que é constitutivo da identidade dos jesuítas.  Tanto dos dois portugueses personagens do romance de Shusaku Endo que Scorsese transporta à tela como de todos os membros da Companhia de Jesus desde sua fundação pelo basco Inácio de Loyola. Os Exercícios Espirituais, experiência que configura aqueles que se sentem chamados a ingressar na ordem missionária mais famosa da história do Catolicismo, se fazem sensíveis e eloquentes ao longo da trama.
            Scorsese, ao que parece, fez a experiência que Inácio propõe aos que seguem seu carisma. Nota-se inclusive que conhece bem seu percurso, suas exigências e marcos principais. Aos jesuítas que partiam em missão em país estranho e muitas vezes hostil, a espiritualidade que emana dos Exercícios ajudava a não perder o rumo, o objetivo, a razão mesma da existência, da vocação e de estar longe de todas as referências em nome da fé e da missão.
            Tudo parece muito claro aos dois jovens jesuítas que, no entanto, são surpreendidos em seu idealismo e sua jovem vocação por algo que se revela uma imensa incógnita: o sofrimento humano e o aparente silêncio de Deus diante dele. Com essa torturante pergunta se vão debater e encontrar rumos e fins diferentes.  A mesma pergunta, com igual grau de gravidade e peso, foi levantada e pronunciada séculos depois, por ocasião do holocausto nazista.
            Onde está Deus? Por  que se cala? Como é possível falar dEle e pronunciar Seu nome diante de tanto sofrimento absurdo e aparentemente sem nenhum sentido? O gênio do cineasta ítalo-americano – seguindo a inspiração do escritor japonês -  vai perseguir a questão e suportar seu peso sem procurar soluções fáceis. O caminho não necessariamente desemboca em uma resposta que satisfaz a razão.  Mas andar por esse caminho se torna possível e carregado de sentido se a fé move as mentes e os corações sem deixar de lado a razão.
            Quando a razão esbarra em seus limites, a fé prossegue o caminho e a busca. E o espectador é delicada e gentilmente convidado a entrar neste percurso.  Sem dúvida, um grande filme.  E uma boa oportunidade para mergulhar mais fundo na Quaresma que hoje vivemos.

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A    teóloga é autora de “O  mistério e o mundo – Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.


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