Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Mais uma vez, o Dia
Internacional da Mulher obriga a nós, artesãs da palavra, a
voltar-nos sobre nossa condição e gênero. Uma reflexão sobre a mulher,
sobre o ser mulher, no singular e no coletivo, se impõe a cada ano por ocasião
deste dia. Pois a mulher não é um tema de moda que emerge, cresce e depois
passa. É questão de cada dia, de todo dia, sempre arcaico, sempre novo, pois
assim é a condição humana com a diferenciação já nela plantada pelo próprio
Criador: Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem
e mulher os criou. (Gen 1,27)
Desde o início, o autor
bíblico chama a atenção para a maravilha diferenciada da Criação, feita da
mesma corporeidade tirada da terra (Adão, adama: tirado da terra), mas
apresentando uma versão diferente: Eva – a mãe dos viventes, a que traz em sua
corporeidade a potência de gerar o outro.
No judeu-cristianismo e na
linguagem bíblica, embora a denominação mais corrente do Antigo Testamento para
a mulher seja a palavra “ ischa”, existe o termo “nekeva”, que é aplicado a
todas as femeas em todas as categorias de seres vivos e que significa “a aberta”,
“a perfurada”.
Com precaução, pode-se
usar o termo nüqëbâ (nekeva) para referir-se às mulheres, consciente, no
entanto, de que o termo oficial no singular é ´iššâ (ischa). A grande diferença
é que o primeiro - nüqëbâ (nekeva) - se utiliza mais para
referir-se a animais, ou seja, “macho e fêmea”. No Pentateuco
especialmente, a tradição sacerdotal prefere este termo para enfatizar o
aspecto da reprodução na diferenciação de gêneros. Os dicionários bíblicos em
geral identificam nekeva na explicitação do que seria a fêmea, no
sentido de aberta, perfurada, à diferença do macho, cujo falo prolonga a
corporeidade ao mesmo tempo fechada e ativa que é a sua.
Em resumo, na Bíblia,
nekeva é a fêmea tanto dos humanos como dos animais. A mulher, portanto, segundo
a concepção bíblica, é um “ buraco” (e este seria o sentido mais profundo da
palavra hebraica “mulher” (fêmea) em hebraico.
Este vazio, este buraco da
corporeidade feminina remete a sua porosidade, a sua potencialidade
metamórfica, a sua abertura receptiva para a alteridade. Muitos autores e
autoras modernos identificam nessa abertura, nesse vazio, oco disponível e
pronto a ser habitado e preenchido, o lugar da Transcendência na criação finita
capaz do infinito pela graça. Seguem daí uma concepção da mulher que valoriza a
maternidade, pela significação que a esta dão as religiões em geral e o
cristianismo em particular.
As construções
imaginárias de muitas religiões antigas veem o mundo como um macrocosmo do
corpo feminino, com seus ciclos e suas fertilidades intercaladas de
esterilidades. Assim também o Cristianismo, com toda a importância que dá a
Maria, Virgem e Mãe, elabora um discurso ainda não superado sobre essa abertura
e “perfuração” do corpo feminino, do qual sai e brota a salvação da humanidade.
A religião reconhece o poder único e inimitável do paradigma materno. E
reconhecendo-o, o perpetua, trazendo assim equilíbrio ao humano.
A grande pensadora
francesa Julia Kristeva, ateia fascinada pelo religioso e pela mística, afirma
que colocar, como o faz nossa época, todos os refletores sobre o biológico e o
social, a liberdade sexual e a paridade de competências e salários, torna a
nossa civilização a primeira que carece de um discurso sobre a complexidade da
vocação materna. E confessa ser seu sonho poder ajudar as mães a reencontrar a
paixão da gravidez, da reprodução. Em seu trabalho de psicanalista
percorre um caminho que vai nessa direção.
Ao comentar a pintura de
flores exuberantes e ossos lisos da artista estadunidense Georgia O´Keeffe,
comenta Kristeva que “as mulheres tiveram desde sempre uma percepção íntima,
germinal e cíclica da beleza renascente de tudo que é vivo, porque elas a levam
em seu ventre fecundo."
A corporeidade feminina,
portanto, acompanha a configuração das flores em sua fertilidade, em sua
vitalidade, em sua explosão de vida e de alteridade. E dá testemunho de que os
ossos secos da visão do profeta Ezequiel, no capítulo 37 do livro do mesmo
nome, podem não só reviver como transformar-se em flores pujantes de beleza e
vigor.
A abertura, a perfuração
do corpo da mulher, longe de ser cicatriz que fecha e esteriliza, é caminho
para que a vida aconteça. E isso não constitui uma diminuição que contrai
e atrofia, mas sim potencialidade que dilata e empodera.
Minha reflexão neste Dia
da mulher é que fizemos um percurso no encalço da libertação de nosso
corpo. Não queremos mais ser escravas sexuais, ou empregadas de luxo,
meros receptáculos de machos desrespeitosos e violentos. Me parece que
está na hora de realizarmos, com força e doçura, a redenção do que de mais belo
nos foi dado.
Trata-se de algo muito
além do biológico puro e simples. Algo sagrado e sublime: a inscrição em
nossa carne da geração da vida. Mesmo as mulheres que nunca geraram ou pariram
um rebento carregam em seus corpos essa “perfuração” que vai dar nas fontes
arcanas do mistério da existência. Neste dia, celebremos esse oco, esse
“buraco” que há em nós, que palpita e lateja ao ritmo do desejo do Criador e do
qual pode jorrar vida em abundância para muitos.
Maria Clara Lucchetti
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é
autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
Nenhum comentário:
Postar um comentário