Por Reginaldo Veloso *
“Seja o vosso
sim, sim, e o vosso não, não.
O que passa disso vem do Maligno” (Mt 5,37)
Cheguei a Roma, como jovem seminarista, no dia 11 de outubro de 1958,
véspera dos funerais de Papa Pio XII. Com o sepultamento do seu corpo,
encerrava-se uma etapa da história da Igreja, marcada pelo clericalismo ad intra, pra dentro, e pelo
reacionarismo alienado e alienante ad
extra, pra fora.
Algumas semanas após, em 28.10.1958, estava da Praça de São Pedro,
quando se anunciava a eleição do novo Papa, para a frustração de muitos, um desconhecido,
idoso, escolhido após três dias de impasse no conclave, como um papa “de
passagem”. A expectativa era de que, com sua morte, que razoavelmente se podia
imaginar não tardasse muito, se pudesse escolher alguém que, correspondendo às
expectativas de todos ou da maioria dos cardeais, tivesse mais chance de vida,
de um longo pontificado. Na verdade, mais uma vez, “veio um homem enviado por
Deus, seu nome era João” (Jo 1,6).
E João XXIII foi logo dando a cara e as cartas, na esperança de que toda
a Igreja fizesse o mesmo. Já no Natal de 58, vai visitar as crianças doentes
nos hospitais e os encarcerados, conversando amigavelmente, tanto com as
crianças como com os presos. Em 1960, assumindo-se, antes de tudo, como “Bispo
de Roma”, convoca o 1º Sínodo da Diocese de Roma, como quem quer, antes de
tudo, dar o exemplo, começando de casa. Comemora o 70º aniversário da Encíclica
Rerum Novarum, com a publicação, em
maio de 61, da surpreendente Mater et
Magistra, atualizando corajosamente o ponto de vista da Igreja sobre as questões
sociais e cunhando a palavra socialização.
Neste mesmo ano, comemora o Natal com a convocação oficial do Concílio Vaticano
II, em 25.12.1961. Sem saber nem querer, eu, que havia sido ordenado
presbítero, dois dias antes da convocação do Concílio, estava predestinado a ser
testemunha ocular do momento talvez mais significativo da multissecular
história da Igreja.
Daí por diante, foi só graça sobre graça e aprendizado sobre aprendizado:
João XXIII convida toda a Igreja a abrir com ele os olhos para os “sinais dos
tempos”, a se motivar para as mudanças que os novos tempos poderiam dela
exigir, a converter-se ao Cristo dos Evangelhos, a buscar a unidade com todas
as Igrejas que se reúnem em nome de Jesus, e a colocar-se, na força do
Espírito, com todas as pessoas de boa vontade, a serviço da Humanidade, para
que o Reino de Deus, a Terra Prometida,
acontecesse, “assim na terra como no céu”.
João XXIII, na verdade, apenas teve tempo de dizer a que veio e
desencadear as forças de transformação, de conversão e mudança no seio da
Igreja Católica, que, não só sacudiriam toda a Igreja Católica, mas envolveriam,
desde o início as demais Igrejas que iriam atender a seu convite e se encantar
com sua sede e seu sonho de unidade. Presidiu apenas à primeira sessão do Concílio,
um começo de conversa que se encerrava sem promulgação de nenhum documento. Mas
o caminho estava aberto e os primeiros passos foram dados no rumo que o Mestre
apontara: “Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (cf. discurso
inaugural). Com a alegria do velho Simeão, o Papa Bom sai de cena a 03.06.1963,
deixando uma imensa saudade, mas a certeza de que um “novo Pentecostes”
irrompia no seio da Igreja. Poucos meses antes de morrer, em abril de 1963,
publicara nada menos que a Encíclica Pacem
in Terris, em tempos de guerra fria e escalada nuclear, dirigindo-se não
apenas à Igreja, mas “todos os homens de boa vontade”, em nome da paz tão
ameaçada.
Fiel ao legado do seu profético predecessor, Paulo VI haveria de levar a
cabo esse virtuoso processo que, ao longo de quatro anos de vigorosa primavera,
resultaria em frutos sazonados destinados a alimentar, daí por diante, todos e
todas que tinham “fome e sede da justiça”, fome e sede durante tanto tempo
reprimidas. Da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, a Sacrosanctum Concilium (04.12.1963), à Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, a Gaudium et Spes (07.12.1965), o Concílio deu a cara e as cartas, como
disse Paulo VI na homilia de conclusão do mesmo, de olho naquela “antiga
história do bom samaritano”, que “foi exemplo e norma segundo os quais se
orientou o nosso Concílio”.
Mas como foi importante e decisiva, durante todo o desenrolar do
Concílio, a presença militantemente profética de Dom Helder Camara e dos que
com ele assinaram, a 16 de novembro de 1965, o “Pacto das Catacumbas” por uma
Igreja pobre a serviço dos dois terços pobres da Humanidade!
Esse mesmo Dom Helder haveria de ser nomeado, ainda durante o Concílio,
pelo Papa Paulo VI, para Arcebispo de Olinda e Recife, aqui chegando em 11 de
abril de 1964, havia apenas dez dias do Golpe de 1º de abril. E Dom Helder
chega dando a cara e as cartas desde o seu primeiro e contundente discurso na
Pracinha do Diário:
Um Nordestino falando a
Nordestinos, com os olhos postos no Brasil, na América Latina e no Mundo. Uma criatura humana que se considera irmão
de fraqueza e de pecado dos homens de todas as raças e de todos os cantos do
mundo. Um cristão se dirigindo a cristãos,
mas de coração aberto, ecumenicamente, para os homens de todos os credos e de
todas as ideologias. Um bispo da igreja católica que, à imitação de cristo, não
vem ser servido, mas servir.
(... ... ...)
Claro que amando
a todos, devo ter, a exemplo de Cristo, um amor especial pelos pobres. No
julgamento final, nós todos seremos julgados pelo tratamento que tivermos dado
a Cristo, a Cristo, na pessoa dos que têm fome, têm sede, andam sujos,
machucados e oprimidos...
(... ...)
É evidente que
estão, de modo especial, em nossas cogitações, os Mocambos e as crianças
abandonadas.
Mas, entre nós, na América Latina, a recepção do Concílio se deu de maneira
radical e generosa, na Conferência Geral do Episcopado Latino Americano, em
Medellín (1968), completada, onze anos mais tarde, pela de Puebla (!969). Diante
de um Continente marcado pela “injustiça institucionalizada”, os bispos
latino-americanos, entre eles nosso DOM, como figura de importância maior, dão
a cara e as cartas, convocando toda a Igreja da América Latina a assumir a
opção evangélica pelos empobrecidos, opção essa que passa a ser o referencial
nº 1 de toda a ação pastoral e da reflexão teológica que lhe deu suporte, a
Teologia da Libertação. Os anos 70/80 foram, assim, a primavera das Comunidades
Eclesiais de Base, das Pastorais Sociais, aqui entre nós, do Encontro de
Irmãos, da PJMP, da Ação Católica Operária, do Movimento de Adolescentes e
Crianças, o MAC, das Pequenas Comunidades Inseridas, da Operação Esperança, uma
Igreja que renascia do meio do povo oprimido e excluído, na força do Espírito,
como fermento de libertação e transformação, na perspectiva do Reino anunciado
por Jesus.
Infelizmente, tivemos que suportar durante quase 25 anos um tempo de
retrocesso e “restauração” do clericalismo e do reacionarismo alienado e
alienante de um tempo que jamais imaginávamos que voltasse. Por santos que
possam ser ou ter sido esses dois papas, o longo pontificado de João Paulo II,
completado pelo de Bento XVI, coincidindo, não por mera coincidência, com a
guinada à direita que o mundo dava, significou para a Igreja na América Latina
e sobretudo para a Igreja no Brasil, e mais que tudo, para a Igreja em Olinda e
Recife, um tempo de esvaziamento, de desmonte e calamitosa destruição.
O advento de Papa Francisco chega com ares de Páscoa e Ressureição.
Quando menos se esperava, um papa renuncia para que outro chegue dando a cara e
as cartas que haveriam de acordar a Igreja para a retomada do Vaticano II, da
Alegria do Evangelho, da opção evangélica pelos empobrecidos, da Alegria do
Amor, do Ano Santo da Misericórdia. Suas palavras e sobretudo seus gestos nos
lembram a cada momento o Papa Bom dos anos 50/60. Mas essa semelhança não é
mera coincidência, é corajosa opção pastoral, milagre do Espírito que, como
sempre, “sopra onde quer (...) mas não sabes de onde vem nem para onde vai” (Jo
3,8).
Nessa noite de Vigília, instados pelas ameaças que pesam sobre o povo
brasileiro, nesses dias de trevas e retrocesso, do país e da Igreja, estamos
aqui reunidos, em nome do Evangelho, em memória de Dom Helder, e precisamos ser
uma Igreja que, de novo, dá a cara e as cartas, que mostra sua identidade
assumindo os compromissos que a hora exige. Que tal, cada um, cada uma de nós,
individualmente e enquanto coletivo eclesial que representa, da mais jovem das
catequistas ao irmão Arcebispo que nos honra com sua presença, nos fazermos,
pelo menos, duas perguntas essenciais:
- Estamos percebendo com clareza e abertura de coração os sinais dos
tempos que a conjuntura da vida do país e da vida da Igreja nos aponta?...
- Diante desse cenário e desses sinais, nossas atitudes, inciativas e
ações têm sido atitudes, inciativas, ações de discípulas missionárias, de
discípulos missionários de Jesus de Nazaré, o Ungido de Deus?...
Irmãs e irmãos, não podemos ser
menos atentos e conscientes que Aquela que percebeu exatamente qual era o
problema do mundo do seu tempo e de sempre: a soberba e a prepotência dos
poderosos, a ganância dos ricos, a humilhação e a fome da imensa maioria
empobrecida. Por isso, foi a ela que Deus enviou seu Anjo.
Irmãs e irmãos, não podemos ser
menos disponíveis que Aquela, cuja virgindade, muito mais que uma condição
fisiológica, foi uma realidade espiritual: disponibilidade para o chamado, o
chamado da História, o chamado de Deus.
Irmãs e irmãos, não podemos ser
menos revolucionários que Aquela, cujo “sim”, possibilitou que o Verbo de
Deus montasse seu barraco no meio da gente, assumisse nossa carne e nossas conjunturas,
e começasse uma nova história, que realizasse de maneira cabal as Promessas
antigas de uma “terra boa e espaçosa, terra onde corre leite e mel” (EX 3,8).
Só assim teremos moral para cantar o Cântico de Maria, que, com certeza,
não é cantiga para boi dormir, como dá impressão muito louvor, muita adoração, muita
“canção nova”, muito remelexo, que parecem ter muito mais de “ópio do povo”,
que do “Canto Novo da Nação do Divino”. Por sinal, permitam-me encerrar
lembrando o Pe. Geraldo Leite Bastos de saudosa memória, o Pastor da Ponte dos
Carvalhos, pioneiro das Comunidades Eclesiais de Base, a respeito de quem e de que,
Dom Helder, um dia, nos idos de 70, na capa do LP “Nação do Divino, assim
escrevia: “O Concílio Ecumênico Vaticano II está sendo vivido plenamente ali”.
“Vem, vamos embora que
esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer!”
Recife,
07.02.2017
Reginaldo Veloso, presbítero
leigo das CEBs
Assistente regional adjunto
do MTC
Assessor pedagógico do MAC
Assessor pedagógico do PROAC
* Texto escrito para a II Vigília da esperança Articulação de Leigos Cristãos.
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