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segunda-feira, 17 de julho de 2017

A ÁGUA E O BATISMO

Maria Clara Lucchetti Bingemer



O Batismo é, sem dúvida, o sacramento de que mais fala o Novo Testamento. Trata-se do sacramento da iniciação cristã, a porta pela qual judeus e gentios vão ter acesso à comunidade daqueles que crêem em Jesus Cristo e o seguem ao longo da vida e até a morte .
O simbolismo do Batismo passa pela água, esse elemento da natureza sem o qual a humanidade não consegue viver e que carrega em si tão profunda e consistente riqueza de significado.  Pois a água não apenas dá vida, lava e purifica, mata a sede satisfazendo o desejo e hidratando o corpo, como também mata quando desce dos morros e favelas em enxurradas que a tudo arrasta e afoga homens, mulheres, crianças, casas, animais, destruindo plantações e colheitas.
O significado etimológico da palavra Batismo está intimamente ligado a este elemento que é seu sinal sensível, criador da realidade sacramental: a água.  Batismo, portanto, palavra de origem grega quer dizer  imersão, banho.  Nas Escrituras hebraicas há todo um riquíssimo simbolismo da água em chave cosmológica e histórica, sobre o qual não nos cabe estender-nos aqui. A Lei judaica, já no Antigo Testamento, prevê e inclui em suas prescrições  abluções e banhos rituais purificadores, usando a água como elemento central. E, entre os dois testamentos, aparece o Batismo  de João Batista, que o próprio Jesus vai receber e que tem características penitenciais e purificadoras. 

O Batismo de João, porém, é diferente do Batismo de Jesus, e os autores neotestamentários fazem questão de ressaltar este ponto.  O primeiro é um rito de penitência, que vai servir de preparação para o verdadeiro Batismo, que será o de Jesus (cf. (At 19,1-7).  Entre João e Jesus há, pois, uma continuidade, na medida em que Jesus recebeu o batismo de João, recebeu discípulos de João em seu grupo, os quais receberam o batismo de João e há igualmente na superação e novidade, expressa pelo próprio João (Mt 3,11)).

Na verdade, o sentido da água no rito batismal não está tanto ligado em primeiro plano a uma idéia de purificação, mas de passagem, que expressa a salvação. O catecúmeno que vai se batizar “passa” pela água e isto simboliza sua passagem da vida em pecado para uma vida nova, a vida da graça.

Nos textos neotestamentários, a Igreja Primitiva nos aparece  mais preocupada em salientar a novidade radical deste ritual em relação aos rituais judaicos e o conteúdo salvífico próprio desse gesto sacramental: o comprimento das promessas de Deus e a realização das maravilhas de sua salvação em favor do povo.

Diferente do rito de iniciação judaico, que passa obrigatoriamente pela anatomia masculina, e que só é concedido a judeus, o  rito batismal vai incluir as mulheres, os gentios de toda sorte, os escravos e os de qualquer condição social, inaugurando uma nova maneira de ser e de viver, que não encontra espaço e não deixa lugar para a exclusão de qualquer espécie. É de uma Igreja feita de batizados que Paulo vai poder proferir a libertadora afirmação da carta aos Gálatas, capítulo 3, 28: Não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos sois um só em Cristo Jesus. O Batismo vai não só mostrar, mas sinalizar indelevelmente com a força do sacramento, que em Cristo Jesus todas as diferenças foram abolidas e que as águas batismais lavaram e diluíram todas as fronteiras separatistas, abrindo caminho a uma comunidade universal que não admite discriminações dentro ou fora de seus limites de pertença.

Assim sendo, o Batismo dá ao ser humano uma nova identidade, toda ela marcada por uma dinâmica pascal. Significa morte ao “velho homem” ou ao Adão antigo, o que significa morte ao pecado e à separação de Deus, e a tudo que constitui o reino das trevas.  Morte, portanto, à vida antiga.  Por outro lado, esta morte e ruptura radical implica um estar disposto, como Cristo, a dar sua vida pelo povo. Aí está o sentido da existência não só do leigo, nem só do sacerdote ou do religioso, mas de todo cristão. Existir não mais para si, mas para "fora de si" — para Deus e para os outros ( cf. 2 Co 5,15).

Esse novo modo de existir não acontece, no entanto, sem conflitos. Para Jesus, o conflito desembocou na Cruz. Para os batizados que seguem a Jesus, isso implicará deixar para trás apoios e seguranças outras para compartilhar com Jesus as situações humanas-limite, que pontilharam seu existir: incompreensão, solidão, sofrimento, fracasso, incerteza, perseguição, tortura, morte. Mas também — e não menos — amizade, amor, comunhão, solidariedade, paz, alegria, ressurreição e exaltação.

O batizado, portanto, “perde” a sua antiga identidade para ganhar uma nova identidade, uma identidade crística, já que o fundo mais profundo desta nova identidade é a própria pessoa de Jesus Cristo, sua vida, seu agir e sua morte e ressurreição.

Além e para além de incorporar o ser humano a Cristo, outro efeito fundamental do Batismo é incorporá-lo a uma comunidade eclesial (1Cor 12,13; Gal 3,27). Por isso, além de trazer uma nova identidade – a identidade crística – àquele ou àquela que por ele passa, o Batismo é o sacramento que configura a Igreja. O modelo de Igreja que surge a partir do Batismo é, portanto, o de uma comunidade dos que existem para os outros, dos que assumiram um destino na vida: viver para os outros. 

         Não se trata, portanto, de uma Igreja massificada e amorfa, nem muito menos de uma Igreja eivada de  divisões de classes.  Trata-se, sim, da grande comunidade dos que vivem em suas pessoas e em suas vidas o mistério de Cristo, dos que são batizados, dos que foram mergulhados na morte de Cristo e renasceram para uma vida nova, voltada para fora de si, de serviço e dedicação aos outros e de construção do Reino.  A partir daí se organiza a Igreja, que será uma comunidade viva, construída a partir não de cargos previamente estruturados que determinam a importância de cada membro da comunidade dentro do todo, mas a partir da comum graça de serem batizados e portadores, portanto, de uma identidade que é o próprio Jesus Cristo.

         Nos dias de hoje, a Igreja vem lutando, com coragem e determinação, para re-encontrar esse modelo presente nas fontes da revelação e da vida cristã.  Isso a vem obrigando,  igualmente, a navegar em águas mais profundas e mover-se em terrenos talvez mais movediços e complexos, a fim de ser capaz de fazer-se ouvir em meio ao tumulto do mundo de hoje, eivado de tantos apelos e tantas possibilidades.

        O Batismo, no entanto, com a força de suas águas onde fomos imergidos e das quais emergimos para uma nova vida nos convoca para uma vida semelhante à de Jesus.  É para essas águas sempre mais profundas que o Espírito do Senhor hoje nos convida a avançar.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora do Departamento de Teologia  da PUC-Rio,é autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco).

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