Maria Clara Lucchetti Bingemer
O Batismo é, sem dúvida, o sacramento de que mais
fala o Novo Testamento. Trata-se do sacramento da iniciação cristã, a porta
pela qual judeus e gentios vão ter acesso à comunidade daqueles que crêem em
Jesus Cristo e o seguem ao longo da vida e até a morte .
O
simbolismo do Batismo passa pela água, esse elemento da natureza sem o qual a
humanidade não consegue viver e que carrega em si tão profunda e consistente
riqueza de significado. Pois a água não apenas dá vida, lava e purifica,
mata a sede satisfazendo o desejo e hidratando o corpo, como também mata quando
desce dos morros e favelas em enxurradas que a tudo arrasta e afoga homens,
mulheres, crianças, casas, animais, destruindo plantações e colheitas.
O significado etimológico da palavra Batismo está intimamente
ligado a este elemento que é seu sinal sensível, criador da realidade
sacramental: a água. Batismo, portanto, palavra de origem grega quer
dizer imersão, banho. Nas Escrituras hebraicas há todo um
riquíssimo simbolismo da água em chave cosmológica e histórica, sobre o qual
não nos cabe estender-nos aqui. A Lei judaica, já no Antigo Testamento, prevê e
inclui em suas prescrições abluções e banhos rituais purificadores,
usando a água como elemento central. E, entre os dois testamentos, aparece o
Batismo de João Batista, que o próprio Jesus vai receber e que tem
características penitenciais e purificadoras.
O Batismo de João, porém, é diferente do Batismo de
Jesus, e os autores neotestamentários fazem questão de ressaltar este
ponto. O primeiro é um rito de penitência, que vai servir de preparação
para o verdadeiro Batismo, que será o de Jesus (cf. (At 19,1-7). Entre
João e Jesus há, pois, uma continuidade, na medida em que Jesus recebeu o
batismo de João, recebeu discípulos de João em seu grupo, os quais receberam o
batismo de João e há igualmente na superação e novidade, expressa pelo próprio
João (Mt 3,11)).
Na verdade, o sentido da água no rito batismal não
está tanto ligado em primeiro plano a uma idéia de purificação, mas de passagem, que
expressa a salvação. O catecúmeno que vai se batizar “passa” pela água e isto
simboliza sua passagem da vida em pecado para uma vida nova, a vida da graça.
Nos textos neotestamentários, a Igreja Primitiva
nos aparece mais preocupada em salientar a novidade radical deste ritual
em relação aos rituais judaicos e o conteúdo salvífico próprio desse gesto
sacramental: o comprimento das promessas de Deus e a realização das maravilhas
de sua salvação em favor do povo.
Diferente
do rito de iniciação judaico, que passa obrigatoriamente pela anatomia
masculina, e que só é concedido a judeus, o rito batismal vai incluir as
mulheres, os gentios de toda sorte, os escravos e os de qualquer condição
social, inaugurando uma nova maneira de ser e de viver, que não encontra espaço
e não deixa lugar para a exclusão de qualquer espécie. É de uma Igreja feita de
batizados que Paulo vai poder proferir a libertadora afirmação da carta aos
Gálatas, capítulo 3, 28: Não há judeu nem grego, nem escravo nem
livre, nem homem nem mulher, pois todos sois um só em Cristo Jesus. O
Batismo vai não só mostrar, mas sinalizar indelevelmente com a força do
sacramento, que em Cristo Jesus todas as diferenças foram abolidas e que as
águas batismais lavaram e diluíram todas as fronteiras separatistas, abrindo
caminho a uma comunidade universal que não admite discriminações dentro ou fora
de seus limites de pertença.
Assim
sendo, o Batismo dá ao ser humano uma nova identidade, toda ela marcada por uma
dinâmica pascal. Significa morte ao “velho homem” ou ao Adão antigo, o que
significa morte ao pecado e à separação de Deus, e a tudo que constitui o reino
das trevas. Morte, portanto, à vida antiga. Por outro lado, esta
morte e ruptura radical implica um estar disposto, como Cristo, a dar sua vida
pelo povo. Aí está o sentido da existência não só do leigo, nem só do sacerdote
ou do religioso, mas de todo cristão. Existir não mais para si, mas para
"fora de si" — para Deus e para os outros ( cf. 2 Co 5,15).
Esse novo modo de existir não acontece, no entanto,
sem conflitos. Para Jesus, o conflito desembocou na Cruz. Para os batizados que
seguem a Jesus, isso implicará deixar para trás apoios e seguranças outras para
compartilhar com Jesus as situações humanas-limite, que pontilharam seu
existir: incompreensão, solidão, sofrimento, fracasso, incerteza, perseguição,
tortura, morte. Mas também — e não menos — amizade, amor, comunhão,
solidariedade, paz, alegria, ressurreição e exaltação.
O batizado, portanto, “perde” a sua antiga
identidade para ganhar uma nova identidade, uma identidade crística, já que o
fundo mais profundo desta nova identidade é a própria pessoa de Jesus Cristo,
sua vida, seu agir e sua morte e ressurreição.
Além e para além de incorporar o ser humano a
Cristo, outro efeito fundamental do Batismo é incorporá-lo a uma comunidade
eclesial (1Cor 12,13; Gal 3,27). Por isso, além de trazer uma nova identidade –
a identidade crística – àquele ou àquela que por ele passa, o Batismo é o
sacramento que configura a Igreja. O modelo de Igreja que surge a partir do
Batismo é, portanto, o de uma comunidade dos que existem para os outros, dos
que assumiram um destino na vida: viver para os outros.
Não
se trata, portanto, de uma Igreja massificada e amorfa, nem muito menos de uma
Igreja eivada de divisões de classes. Trata-se, sim, da grande
comunidade dos que vivem em suas pessoas e em suas vidas o mistério de Cristo,
dos que são batizados, dos que foram mergulhados na morte de Cristo e
renasceram para uma vida nova, voltada para fora de si, de serviço e dedicação
aos outros e de construção do Reino. A partir daí se organiza a Igreja,
que será uma comunidade viva, construída a partir não de cargos previamente
estruturados que determinam a importância de cada membro da comunidade dentro
do todo, mas a partir da comum graça de serem batizados e portadores, portanto,
de uma identidade que é o próprio Jesus Cristo.
Nos dias de hoje, a Igreja vem lutando, com coragem
e determinação, para re-encontrar esse modelo presente nas fontes da revelação
e da vida cristã. Isso a vem obrigando, igualmente, a navegar em
águas mais profundas e mover-se em terrenos talvez mais movediços e complexos,
a fim de ser capaz de fazer-se ouvir em meio ao tumulto do mundo de hoje,
eivado de tantos apelos e tantas possibilidades.
O Batismo, no entanto, com a força de suas águas onde fomos imergidos e
das quais emergimos para uma nova vida nos convoca para uma vida semelhante à
de Jesus. É para essas águas sempre mais profundas que o Espírito do
Senhor hoje nos convida a avançar.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio,é autora de “O mistério e o
mundo” (Editora Rocco).
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