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quarta-feira, 19 de julho de 2017

”ENQUANTO ALGUNS PROTESTAM A CARAVANA PASSA…”


Por Ivone Gebara



A imagem usada pelo ‘presidente’ Temer para celebrar a aprovação pelo Senado da Reforma Trabalhista ontem foi de uma fina crueldade.  Qual é a caravana que passa? E passa onde? E passa sobre quem?

Passa sobre corpos estendidos, sobre corpos famintos e sofridos que reclamam por casa, terra, trabalho e pão. A caravana passa, massacra e mata porque os cavaleiros e os cavalos estão gordos de tanto comerem a comida do povo.

Os cavaleiros armados e com armaduras são mantidos por outros de ‘corpos sutis’ que de seus escritórios em qualquer lugar do mundo jubilam de alegria diante da vitória expressiva de Mamón. É Mamón sua divindade suprema. Por ele sacrificam vidas que nada significam para seu culto e sua glória. É Mamón que governa seu mundo.

Os políticos do governo são títeres de Mamón. São seus servos que apenas o ajudam a engordar seus cofres, suas Bolsas e dominar a terra em troca de benefícios que o fogo e as traças um dia comerão.

Não gozarão individualmente de seus roubos. A bendita morte os alcançará. Um AVC, um infarto fulminante, um tumor maligno, um desastre inesperado, uma diarreia incontrolável os eliminarão.

Mas enquanto isso não acontece imaginam-se imortais. Creem em seu poder. Corrompem-se mutuamente para gozar num instante breve das deliciosas iguarias recebidas pela glorificação de Mamón. Já recebem seus prêmios agora enquanto o povo ‘lazarento’ come migalhas caídas de suas mesas. Falam de humanidade e de respeito na medida em que estas palavras lhes servem. As banalizam para aparecer como cidadãos justos e dignos. Enganam os incautos e os que já não têm mais forças para entender o que está acontecendo no país e no mundo.

As bravas senadoras da oposição mantiveram a fibra das mulheres fortes defensoras do povo até o fim.  Sentadas à mesa da presidência do Senado durante seis horas além das que gritavam e apoiavam-nas de seus lugares, tudo fizeram para impedir a ‘caravana’ de passar. Último recurso, talvez, mas um recurso digno que ficará na história política do país como o grito daquelas e daqueles que não podem dobrar-se e negociar o inegociável. O inegociável é a piora das condições de vida do povo brasileiro, ou melhor, da maior parte do povo.

Parabéns Fátima, Gleise, Vanessa, Regina, Lídice e tantas outras como Erundina, Benedita, Katia que bravamente com outros oposicionistas gritaram por justiça expondo-se à caravana loucamente desenfreada. E ainda assim, as senadoras foram acusadas por jornalistas e políticos de não agirem por força própria, mas por manipulações masculinas de fora. Incrível ousadia de querer virar o jogo desprestigiando a força das mulheres! E não só isto, foram também acusadas de perturbadoras da ordem do honrado Senado federal, algo nunca visto antes. Como se a mentira dos senadores fosse a ordem e a denúncia da mentira pelas mulheres fosse a desordem.

Mais uma vez confundem o povo com seus discursos sobre a ordem, sobre a lei, sobre a necessidade de modernização, sobre um bem que querem dar ao povo. Um ‘bem’ sem que o povo o escolha!

Insistem em dizer que as leis da CLT foram inspiradas por Mussolini e escritas e aprovadas por Getúlio, um ditador. Quando lhes serve, Getúlio é santo do povo e quando não, é ditador. Camaleões da república colorindo-se conforme seus interesses! Insensatos que não distinguem o bem comum do individualismo que os caracteriza!

Para que povo governam eles? Qual é a democracia que se sustenta fora dos apelos e necessidades reais do povo?

Aqui está a chave do problema. É que imaginamos estar numa democracia, mas estamos apenas nominalmente, apenas retoricamente,  apenas para encher a boca com essa palavra esvaziada de seu sentido original. Não há democracia por aqui! O que há é algo sem nome, algo confuso parecido com uma oligarquia, uma gerontocracia ou, como disseram alguns, uma corruptocracia. Tudo pela e para a Bolsa, nada para os pobres!

Estamos todas e todos misturados nessa massa pegajosa sem saber como sair dela, como limpar nossas mãos e nosso corpo de sua aderência incômoda. Não temos ainda a água pura que possa nos ajudar a limpar as mãos, o corpo, as mentes e o coração. O ar poluído desse momento nos sufoca. Tudo está alterado e em ebulição como se estivéssemos num dilúvio de proporções nacionais e mundiais. Ainda não avistamos terra firme. Ainda não dá para mandar nossos pássaros para ver se há algum ramo verde para além do dilúvio. Mas dá para esperar que de repente um ramo verde possa aparecer e nutrir a esperança da reconstrução de nosso país. Dá para algumas e alguns darem-se as mãos e pensar em caminhos alternativos.

Parabéns bravas mulheres!

Vocês nos fazem lembrar as mulheres rurais de Chipko do Himalaia que não tiveram outro recurso para salvar seus bosques senão abraçar-se às árvores quando estas iam ser cortadas. Vocês nos fizeram pensar nas sufragistas que expuseram seus corpos às muitas manifestações para terem o direito ao voto. Vocês nos fizeram pensar nas mulheres sem terra e sem teto que continuam lutando nesse país de cabeça erguida.

Parabéns senadoras!

Vocês são o ramo verde, ainda que apenas um broto de pequenas proporções que nos fazem esperar e crer num Brasil onde todas e todos possam caber com dignidade.  Reconhecendo nossos limites pessoais e institucionais e dentro dessa massa pegajosa na qual todas e todos estamos, continuaremos dizendo Não a esta insana e corrupta ‘caravana’!

Parabéns a nós todas e todos que mantemos nossas lâmpadas acesas em meio à obscuridade de nosso tempo!


Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso. Entre suas obras publicadas estão Compartilhar os pães e os peixes, O cristianismo, a teologia e teologia feminista (2008), O que é Cristianismo (2008), O que é Teologia Feminista (2007), As águas do meu poço. Reflexões sobre experiências de liberdade (2005), entre outras.

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