Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Para
celebrar os 500 anos da Reforma, um marco na história do Cristianismo,
reuniu-se em Belo Horizonte a Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da
Religião (Soter). O objetivo era discutir não apenas o evento que inaugurou o
Protestantismo, como também a pluralidade religiosa que hoje é uma realidade
sempre mais presente em todo e qualquer intento de pensar a fé com rigor e
autenticidade.
Há cinco séculos, Martinho Lutero, monge agostiniano, entendeu que a Igreja
necessitava de uma reforma. E, assim, iniciou um movimento cuja carta
magna foram as 95 teses que pregou na porta da igreja do Castelo de
Wittenberg. Tratava-se de um protesto contra diversos pontos da doutrina da
Igreja Católica Romana.
O diálogo de Lutero com o Vaticano não evoluiu bem e houve realmente uma
separação. Lutero recebeu apoio dos príncipes alemães. Roma endureceu e
preparou a Contrarreforma. Nela tiveram destacado papel os jesuítas que
no Concílio de Trento foram protagonistas na preparação do Catecismo Tridentino
que especificava bem a identidade do Catolicismo Romano contra o Cristianismo
Reformado.
Correu tempo, sangue, suor e lágrimas, enquanto os cristãos lutavam uns contra
outros, cada lado clamando possuir a verdade e tratando de combater e/ou
eliminar o erro e o engano do outro. As acusações mútuas variavam da
idolatria à heresia. Todos perdiam e ninguém ganhava.
O Concílio Vaticano II proclamou oficialmente a necessidade imperiosa do
ecumenismo, ou seja, de que todas as confissões cristãs se conscientizassem do
fato de habitar a mesma casa, crer no mesmo Deus e buscar Seu Reino proclamando
o mesmo Evangelho. Era preciso fazer passos efetivos em prol da
unidade.
Hoje é possível e efetivo que católicos e protestantes de várias denominações
se sentem juntos para dialogar em um congresso de três dias inteiros.
Mais: não se defendem de acusações nem esgrimem diferenças. Fazem
autocrítica, pedem perdão, buscam pontos de convergência e não de dissensão.
Juntos, olham mais longe e percebem o quanto receberam um do outro. Os
católicos devem muito aos protestantes a devolução da Bíblia em suas
mãos. Os protestantes, por sua vez, aprendem de seus irmãos católicos,
entre outras coisas, o amor pelo precioso dom da unidade, que é preciso
proteger e estimular de todo coração.
Olhando em volta, percebem quanto o movimento iniciado por Lutero deu frutos e
gerou herdeiros. As religiões que hoje, em imensa diversidade, se tornam
interlocutoras próximas do Cristianismo histórico, enriquecem o pensar
teológico ao mesmo tempo que o desafiam.
Foi bonito ver no Congresso um eminente teólogo luterano fazendo um resgate
histórico do luteranismo sem deixar de apontar suas lacunas e falhas:
intolerância com outras tradições religiosas, rigidez e não aceitação de
diferenças de pensamento, fechamento ao diálogo.
Ao mesmo tempo representantes de outras religiões sentiam-se à vontade para
expor sua experiência de diálogo com o cristianismo católico ou reformado.
Todos eram ouvidos com respeito e sentiam sua contribuição valorizada.
Não poderia faltar a marca sempre positiva e bela da pessoa do Papa Francisco,
que com seu pontificado enche a Igreja e o mundo de esperança de tempos de
abertura e diálogo. Sua presença em Lund, na Suécia, para uma oração
ecumênica com pastores e autoridades do mundo protestante; suas atitudes
ecumênicas e abertas ao longo de todo o seu pontificado permitem esperar
avanços ainda maiores no caminho do ecumenismo.
A liberdade que o atual pontífice cultiva e exprime desde os tempos de Buenos
Aires como arcebispo, reafirma-se e ganha força ainda maior como chefe da
Igreja Católica. É conhecida sua proximidade com o judaísmo e o Islã em
sua Argentina Natal. Em Roma tem dado prosseguimento a essa proximidade,
estendendo-a igualmente a outras religiões não cristãs e não monoteístas.
Não é possível fazer teologia hoje sem um diálogo aberto, profundo e respeitoso
com outras confissões cristãs e outras tradições religiosas. Por isso, o
congresso anual da Soter, que celebrava os 500 anos da Reforma, terminou com
uma nota de esperança. Indo além de todos os passos que já foram dados,
por que não esperar, desejar e mesmo buscar gestos simbólicos que marquem com
força a unidade que já não tem possibilidades de retrocesso?
Entre essas possibilidades inspiradas pelo Espírito estaria talvez um pedido
para que se levantasse a excomunhão de Lutero, datada de 500 anos. E
outros passos criativos e corajosos que se apresentem pelo caminho. Assim, a unidade será multicor e polivalente, mas será, sempre mais autêntica e
verdadeiramente unidade. E a Igreja que quer e deseja isto será, como é
desejo do Papa Francisco, "ecclesia semper reformanda".
Maria
Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “O mistério e o
mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora
Rocco.
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