Por
Eduardo Hoornaert
Por
vezes me pergunto por que os católicos se mostram tão desprovidos de ironia,
eles que se dizem seguidores de Jesus, aquele judeu que costumava incomodar as
autoridades de seu tempo por suas posturas irônicas. Então pensei em escrever
algumas linhas sobre esse tema. Proponho que abordemos o tema em sete
parágrafos. (1). No primeiro fazemos uma ingressão na nossa herança ancestral e
nela descobrimos que a ironia é uma qualidade que temos em comum com diversas
espécies de animais. (2). Acontece que o processo civilizador, em que estamos
inseridos desde alguns milênios, não combina com ironia e costuma rejeitá-la.
(3). De outro lado, as culturas criam, em contraposição com esse processo
civilizador, movimentos que podemos chamar de ‘proféticos’, em que a ironia tem
um lugar de destaque. (4). Verifica-se recorrentemente, nos evangelhos do profeta
Jesus, a opção pela ironia, (5) como demonstram dez episódios aqui brevemente
comentados. (6). Depois de perguntar por que temos tanta dificuldade em
descobrir ironia nos evangelhos, (7) termino sugerindo a substituição da
conhecida expressão ‘extra ecclesiam nulla salus’ por ‘extra ironiam nulla
salus’ (fora da ironia não há salvação).
1.
A ironia, uma herança ancestral.
Por
vezes jogadores de futebol nos empolgam. Por exemplo, quando eles conseguem
passar por dois ou três adversários sem perder o controle da bola, e terminam
fazendo gol. Como conseguem? Pela ‘eirôneia’ (ironia), termo grego que
significa ‘ignorância fingida’. O jogador finge que vai entrar pela direita e,
no exato momento em que o adversário inclina o corpo para a direita, passa pela
esquerda. Ou joga a bola para trás e vira o corpo num movimento tão rápido que
dá vertigem. Reencontra a bola, agora livre de pernas adversas, e chuta gol.
Esses jogadores praticam ali um recurso de inteligência ancestral que está
enraizada em sua animalidade, em seu corpo. E os torcedores participam da
‘ironia’. Eles não se contêm: gritam, pulam, ficam agitados. Alguns perdem até,
por uns instantes, o controle da razão. Os ‘fingimentos’ do jogador encontram
ressonância no público, o que demonstra que aqui se trata de uma comum herança
ancestral, cuja origem se perde nas brumas do passado. Pois existem animais
irracionais que também sabem fingir, enganar, fazer de conta, desviar a
atenção, o que lhes pode ser fundamental na preservação da vida, quando, por
exemplo, são ameaçados de morte e se fingem mortos ou dormindo, tentando, desse
modo, desviar a atenção do vitorioso. Podemos tirar uma conclusão: em situação
de inferioridade, a ironia pode ser uma saída. Ela é uma arma a favor da vida,
uma qualidade universalmente humana, uma herança de nosso passado longínquo.
2.
O projeto civilizador não combina com ironia.
Quando
se começa a articular o projeto civilizador, não sei quantos milênios atrás,
ele favorece as qualidades humanas que facilitam a convivência pacífica em
sociedade e rejeita procedimentos que subvertem sentidos programados e fazem
com que a autoridade civilizadora perca sua segurança. Entre eles, a ironia é
particularmente ‘desconstrutiva’. O riso, a zombaria e a crítica mordaz são
banidos do universo da solenidade, da polidez, da cortesia, da seriedade, que é
o universo da civilização. A ironia não é bem-vinda nas cortes, nos palácios,
nas igrejas, nos órgãos corporativos, no Estado, pois suas arestas arranham o
prestígio e o poder, ridicularizam os que detêm privilégios, não colaboram com
‘ordem e progresso’. O defensor da civilização não demonstra senso de humor,
como escreve nosso Millôr Fernandes:
Para
que ser o bobo da corte
Se
o rei não tem senso de humor?
O
poder do Estado acha que a ironia não tem sentido, é fortuita e bandoleira. Na
realidade, ela corrói a base desse poder, que é a subserviência. Por isso, o
Estado tende a ignorar ou pelo menos tenta ocultar a ironia.
De
outro lado, os que vivem submetidos ao poder do Estado entendem naturalmente a
ironia. Basta uma brecha que permita sua eclosão e eles explodem em riso,
brincadeira, festa, alegria e carnaval. O riso irônico ameaça romper o sistema
social, pois acorda em nós aquela criança que, no conto de Andersen, grita: ‘o
rei está nu’. Essa criança é a única pessoa séria na multidão que vê o rei
passar. Só é sério quem sabe rir. Regimes políticos de cara tensa e punho
fechado, braço levantado e bandeira erguida não são sérios. São perigosos, pois
escondem o ‘rei que está nu’. Depois de visitar Adolfo Hitler em 1938, o
escritor americano Henry Miller anotou em seu diário: Aqui as coisas
andam mal. O homem não ri.
Hoje,
em nossas culturas, a ironia é uma das qualidades humanas menos definidas e
menos valorizadas. Vigora uma censura largamente inconsciente, que repousa
sobre mensagens que recebemos desde a infância e que vão na direção de
desvalorizar a ironia e nos integrar na sociedade oficial. São elas que ficam
gravadas em nossa mente, sem que tomemos a devida consciência disso.
3.
A profecia.
Em
todas as culturas existem fatores ‘proféticos’. Os profetas são os cultivadores
da esperança e por isso mesmo recorrem frequentemente à ironia, pois existe uma
relação vital entre esperança e ironia. A ironia confere robustez à esperança
que, sem ela, corre o perigo de descambar para pura ilusão. Portanto, a ironia
não é um recurso passageiro, que pode até parecer divertido, por parte de quem
prossegue alguma meta na vida, em meio a obstáculos. Ela é uma arma
indispensável, um precioso instrumento nas mãos dos que têm razão, mas não
possuem o poder.
Dou
uns exemplos de profecias que fazem parte de nossa herança cultural.
A
Pérsia, que dominou o Oriente Médio por longos séculos, herdou do antigo mundo
iraniano a figura do dervixe (do pérsico darvesh, esmoler), um tipo de
profeta. É o louco da aldeia, magistralmente representado pela figura de
Johannes no filme Ordet, do cineasta dinamarquês Carlos Dreyer (1955). Como
Johannes, o dervixe, de início, irrita os camponeses da aldeia, mas aos poucos
ganha autoridade, pois mostra a tolice da tradição transmitida de pais em
filhos e ensina como superá-la por meio da liberdade interior. A
comunidade amadurece pela presença do dervixe.
Assim
como os dervixes persas, os profetas hebreus são loucos que revelam a loucura
do mundo. Oseias se casa com uma mulher prostituta para exemplificar a
infidelidade de Israel; Ezequiel abre um buraco na parede de sua casa em
Babilônia, pega suas coisas e as joga fora, para mostrar a derrota iminente de
Jerusalém, enquanto Isaías passa três anos andando nu e descalço para dizer aos
seus compatriotas que o Egito vai deixar Israel exposto na mais completa nudez.
Jeremias, em suas profecias, pega pesadas pedras e as empilha na entrada do
Templo para dizer que Nabucodonosor está se preparando para atacar a Cidade
Santa. Os profetas acusam a sociedade de fomentar a loucura. Frequentemente
anunciam desastres iminentes.
O
universo greco-romano tem igualmente suas figuras
profético-irônicas. Basta evocar a figura de Sócrates, ‘o pai da
ironia’. Ou de Diógenes de Sinope (ca. 412-323 aC), o filósofo ‘cínico’ que
opta por viver dentro de um tonel (o termo ‘cínico’, depreciativo provém do
grego ‘kuôn’, que significa ‘cachorro’. O termo é de Aristóteles) e desafia os
códigos de decência e boa convivência na sociedade reinante. Diógenes consegue
formar um movimento que mantém uma importante influência sobre a sociedade
greco-romana até o século V dC e que apresenta, como alguns estudiosos realçam,
semelhanças com o cristianismo emergente. Crossan chega a definir Jesus como um
‘judeu cínico’ (Crossan, J.D., O Jesus histórico: A Vida de um Camponês judeu
do Mediterrâneo, Imago, Rio de Janeiro, 1994).
4.
O profeta Jesus.
Cínico
ou não, o fato é que Jesus encontra ferrenha oposição por parte dos detentores
do poder na Palestina. Isso o aproxima de jovens desejosos em mudar o rumo
político de seu país. Horsley relata que, na Galileia de Jesus, não poucos
jovens, diante da situação econômica desastrosa, abandonam casa e aldeia para seguir
um ‘profeta’ e praticar atos de terrorismo (Horsley, R.A. e Hanson, J.S.,
Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos populares no Tempo de Jesus, Paulus,
São Paulo, 1995). Mesmo entre os discípulos de Jesus, alguns andam com um
punhal escondido nas dobras do manto (Mc 14, 46, Mt 26, 51-55). Jesus se
manifesta terminantemente contrário ao uso da violência, mas não sabemos até
que ponto ele conseguiu convencer seus companheiros. Pois ele está diante de
uma encruzilhada. Se ficar passivo, abandona seu projeto. Se apoiar a
violência, peca contra seus próprios propósitos. Ele opta pela não-violência
ativa, o que traz consigo que pratique a ironia, a arma dos que têm razão, mas
não têm o poder. A postura irônica se comprova em dez episódios relatados nos
evangelhos, que passo a comentar.
5.
Dez episódios irônicos.
(1)
Jesus entra em Jerusalém montado num jumentinho, (2) deixa os fariseus
boquiabertos com suas respostas, (3) manda seus discípulos como ovelhas em meio
de lobos, (4) lava os pés de seus discípulos, (5) ensina – aos doze anos – a
Lei aos Doutores do Templo e (6) diz que vinho novo só cabe em odres novos. (7)
É um rei sem reino, (8) um mestre sem doutrina (9) um legislador sem
lei, e que, finalmente, (10) prepara a dinastia de Pedro.
Descobrir
essas ironias nos evangelhos é uma questão de percepção. O Evangelho de João,
por exemplo, apresenta numerosas alusões irônicas que facilmente passam
despercebidas. Já no primeiro contato com seus discípulos (1, 19-51), Jesus
brinca com Natanael: Eu vi você sob a figueira (1, 48). Na
cena das bodas em Caná, ele se deleita com o mestre-sala que, às pressas, chama
o noivo, para dizer que a água virou vinho (Jo 2, 10). Na cena
subsequente, ele desafia seus interlocutores: Venham, destruam este
Templo: em três dias o reedificarei (Jo 2, 19). Só que não está
falando do Templo. Na conversa com Nicodemos, Jesus fala o tempo todo de
‘nascer e renascer, nascer da água e renascer do sopro’, a ponto de deixar
Nicodemos perplexo: Como posso nascer de novo, sendo velho? Como entrar
de novo no ventre de minha mãe? (Jo 3, 4). No capítulo 4, ele repousa
por uns instantes na beira do poço de Jacó, de passagem numa aldeia da Samaria,
que é uma terra hostil para judeus. Chega uma mulher para tirar água do poço e
Jesus diz: Dê-me de beber (Jo 4, 7). A mulher fica assustada,
pois homem não fala com mulher, muito menos judeu com samaritana. Aí Jesus
começa a falar longamente sobre uma ‘água que acaba de vez com a sede’. Ela não
entende nada e diz: Senhor, dê-me dessa água para que eu não tenha mais
de vir aqui (v. 15). Como se não ouvisse a mulher, ele continua
falando. Tudo isso para finalmente conseguir o que quer: hospedar-se, por dois
dias, na casa de uma família samaritana (v. 40). Ainda mais: conseguir
hospedagem para seus discípulos. A mesma reação irônica na cena da unção em
Betânia. Quando seus discípulos criticam s mulher por gastar dinheiro com
perfume, ele reage: Vocês sempre terão pobres (para fazer suas
caridades) (Jo 12, 8). Em todo o Evangelho de João, Jesus usa a palavra certa
na hora certa, algumas vezes para sair de uma situação embaraçosa, outras vezes
para causar impacto por meio de colocações absolutamente originais. Os
discípulos nem sempre entendem suas jogadas irônicas, a ponto de ele se mostrar
impaciente: Estou tanto tempo com vocês, e vocês ainda não me conhecem? (Jo
14, 9).
1.
Montado num jumentinho.
A
história da ‘entrada triunfal de Jesus em Jerusalém’ é conhecida. Quando Jesus
e seus apóstolos, de viagem a Cidade Santa para participar das festas de
Páscoa, chegam a Betfagé (o Jardim das Oliveiras), eles têm diante de si o
lindo panorama da cidade de seus sonhos. O enorme edifício do Templo brilha no
horizonte. Nesse momento, peregrinos galileus que acodem à cidade pelo mesmo
motivo, reconhecem Jesus, o cercam e começam a gritar e cantar de alegria. Aí
Jesus tem uma ideia genial: ‘vocês querem festejar? Então vamos lá’. Leiamos
Marcos: (Jesus diz a dois discípulos) ‘vocês vão até a aldeia ali na frente.
Ali encontrarão um jumentinho que ainda não foi montado. Desliguem o animal e
voltem com ele. Se alguém perguntar com que direito vocês fazem isso, respondam
que o Mestre precisa dele e o reenviará logo depois’. Tudo acontece
conforme planejado. Eles trouxeram o jumentinho a Jesus, o cobriram com
suas mantas e Jesus montou nele. Muita gente estendeu seus mantos no caminho,
outros trouxeram galhos que tinham cortado dos campos. Os que iam na frente e
atrás cantaram: Hosana etc. Jesus penetrou em Jerusalém, no recinto do Templo.
Ele olhou em seu redor. Era tarde. Ele saiu e, com os Doze, voltou a
Betânia (Mc 11, 1-11).
O
que Marcos não conta é que essa encenação corresponde exatamente a um ritual
romano que todos os moradores de Jerusalém conhecem: as tropas romanas costumam
encenar ‘entradas triunfais’ em cidades por elas dominadas. O ritual dessa
parada militar comporta quatro elementos: (1) cavaleiros armados passam pela
porta principal da cidade conquistada (2) estendem-se tapetes em baixo dos pés
dos cavalos, (3) abanos são agitados à moda persa e (4) todos os participantes
cantam hinos que exaltam o poder imperial. São exatamente os quatro elementos que
encontramos na narrativa de Marcos, desta vez travestidos em paródia: um
jumentinho em vez de cavalos, mantos do povo em vez de tapetes orientais,
galhos de árvores em vez de abanos, ‘hosana’ em vez de hinos imperiais. Eis uma
ousada paródia irônica, que bate forte na cara das autoridades do Templo, assim
como do poder romano instalado em Jerusalém.
2.
Fariseus sem resposta.
Desde
sua primeira infância em Nazaré, Jesus conhece os fariseus. Eles são
onipresentes nas aldeias da Galileia e controlam a observância da Lei pelos
camponeses. São os perfeitos de Israel, os ‘separados’ do povo pecador. Mas
quando ele se torna adulto, Jesus se decepciona profundamente com essa gente
‘perfeita’. Ele percebe que esses perfeitos são perigosos e que a única forma
de escapar a suas armadilhas e ao mesmo tempo defender suas ideias é a ironia:
(As autoridades do Templo) lhe enviaram, para prendê-lo na armadilha
das palavras, um grupo de fariseus e partidários de Herodes. Chegando, eles lhe
disseram: ‘Mestre, sabemos que você é sincero e que ninguém o influencia. Você
não fica com opiniões, mas ensina em verdade o caminho de Deus. É permitido,
sim ou não, pagar imposto a César? Devemos pagar ou não pagar?’ Ele, que
conhecia a hipocrisia deles, lhes disse: ‘Por que vocês querem me pegar numa
armadilha? Mostrem uma peça de um denário, para que eu veja. Eles mostraram. De
quem é a imagem? Perguntou ele. E o nome? De César. Jesus disse: O que é de
César, dê a César e o que é de Deus, dê a Deus’. E eles ficaram boquiabertos. (Mc
12, 13-17).
3.
Ovelhas a enfrentar lobos.
Nos
arredores de Nazaré, a maioria dos camponeses são pequenos proprietários. Para
sobreviver, trabalham como assalariados nas grandes fazendas da região, nas
terras férteis, ao lado de escravos. São chamados ‘amha'aretz’: matutos,
ignorantes, ‘gentinha que não conhece a Lei’ (Jo 7, 49). Na adolescência,
andando nesses arredores, Jesus deve ter observado a vida desses camponeses e
ficado triste com sua miséria. Quando, adulto, resolve entrar em cena pública,
ele se comove cada vez em que se encontra com esse povo: desembarcando (do
outro lado do Mar da Galileia) Jesus vê uma multidão imensa. Suas
entranhas se comovem: eles andam lá como ovelhas sem pastor (Mc 6, 34).
A vista dessas massas o comove profundamente. São ovelhas desprezadas,
abandonadas à própria sorte, como uma tropa de animais sem pastor (Mt
9, 35-36). Andam pelo deserto onde vagam lobos perigosos.
Quando
Jesus manda seus discípulos a esse povo, ele recomenda que sejam como ovelhas
em meio a lobos: vocês são ovelhas que envio para um mundo de
lobos (Mt 10, 16). Como entender essa contradição, essa ironia? Entrar
em campo para ser destroçado por lobos? Sem formular a coisa em termos
teóricos, Jesus se coloca aqui em oposição à antiquíssima prática do dente
por dente, olho por olho, contra a afirmação do filósofo grego Heráclito
(séculos VI ou V aC) ‘a guerra é a origem de tudo’ (polemos patèr
pantôn), e contra a diretriz da política imperial romana ‘si vis pacem,
para bellum’ (se você quer a paz, se prepare para a guerra). A
militarização como base da paz. Desse modo, como diz Dom Helder Câmara, se
forma uma espiral da violência que nunca chega a um fim. O
versículo Mt 10, 16 é de uma ironia tenaz, de uma esperança que nunca morre.
4.
Lavar os pés dos discípulos.
Durante
a refeição, (Jesus) se levanta, deixa a
mesa, depõe sua vestimenta, amarra uma toalha na cintura, derrama água numa
bacia e começa a lavar os pés de seus discípulos e a enxaguá-los com a
toalha. Pedro vê Jesus passar de um discípulo para outro e reage:Jesus
se apresenta diante de Simão Pedro, que diz: ‘O que, Senhor, você me lavar os
pés? Ah não, você não me lavará os pés, nunca na vida!’. ‘Se não o lavo’, diz
Jesus, ‘você não poderá tomar parte de nada comigo’. ‘Então não só os pés,
Senhor’, diz Pedro, ‘mas as mãos e a cabeça também’ (Jo 13, 2-11).
É
de praxe que os convidados à refeição tenham os pés lavados por algum servo ou
escravo da casa antes de se deitar em torno dos alimentos. Onde já se viu,
pensa Pedro, que o dono da casa lava os pés de seus convidados?
Ele,
que está ansioso por ‘tomar parte’ de tudo que acontece a quem anda com Jesus,
não permite que Jesus lave seus pés. Será que ele capta o que Jesus quer dizer
com esse gesto? Pois não é à toa que Jesus monta uma cena estranha como essa.
Ele quer transmitir algo. Não é fácil entender a nova Lei, em que o grande
serve o pequeno, o superior o inferior, o mestre se rebaixa diante do
discípulo, as prostitutas e os cobradores de impostos são os primeiros a entrar
no salão das festas. Um mundo de cabeça para baixo, um mundo irônico.
5.
O menino prodígio.
No
capítulo 12 do Evangelho de Lucas aparece a história da criança Jesus que, aos
doze anos de vida, ensina a Lei aos Doutores, no recinto do Templo de Jerusalém
e que, quando seus pais, preocupados (com razão!), finalmente o encontram, se
sai com a seguinte frase: ‘Vocês não sabiam que devo estar na casa de
meu Pai?’ (Lc 12, 49). Jesus não vê a presunção dos Doutores da Lei,
não se intimida com a grandiosidade do ambiente, nem liga para a presença
ostensiva de soldados romanos. A cena é irônica no sentido original do termo,
pois ironia significa ‘ignorância fingida’. Jesus finge não ver a situação
concreta em que o Templo se encontra. Para ele, o Templo é a casa de
meu Pai.
6.
Para vinho novo, odres novos.
‘Ninguém
conserta roupa velha com pano novo. A peça nova rasgaria a roupa velha. Novo
sobre velho não dá certo. Para vinho novo, odres novos’ (Mc 2, 21-22). Quem quiser viajar seguro,
derrama seu vinho novo em odres novos (odre é pele de cabrito novo, costurado
em forma de saco para conter e carregar líquidos). Senão, tudo arrebenta e se
perdem ao mesmo tempo o vinho e os odres. Quem prova o ‘vinho novo’ de Jesus
não segue regras ultrapassadas. Não dá para seguir João Batista e Jesus ao
mesmo tempo. João Batista prega penitência, remissão dos pecados, conversão,
ascese, caridade e arrependimento. Enfim, os remédios de sempre. Jesus, pelo
contrário, diz: ‘para vinho novo, odres novos’. Um exemplo: a caridade, tal
qual costuma ser praticada, é coisa velha. Novidade é a mesa compartilhada. O
evangelho não prega a caridade, mas a comensalidade, o que situa o evangelho
além do parentesco, da vizinhança ou da nacionalidade. O pedinte ou estrangeiro
penetra no convívio da casa e senta à mesa (Mc 6, 11). Isso é o irônico vinho
novo de Jesus.
7.
Um rei sem reino.
O
termo ‘reino’ é onipresente nos evangelhos. Aparece nada menos que 53 vezes em
Mateus, 45 vezes em Lucas, 19 vezes em Marcos e 5 vezes em João. Jesus usa o
termo num sentido enigmático, para não dizer irônico. Vejamos, por exemplo, a
cena com Pôncio Pilatos, relatado do Evangelho de João (18, 38 a 19, 16).
Ao
ser transferido do sinédrio (supremo poder judeu) ao pretório (representação do
poder romano), Jesus é logo maltratado por soldados romanos, que o revestem de
um manto purpúreo (paródia da investidura de um rei), e botam em sua cabeça uma
coroa de espinhos. Ensanguentado, ele é levado à presença do Procurador Pôncio
Pilatos, que o apresenta a um público vindo da cidade baixa (observe o termo
grego ‘anabas’!), já que enxerga a oportunidade de encenar por sua vez uma
paródia com Jesus e desse modo angariar a simpatia do povo em sua frente. Ele
‘senta‘ Jesus no lugar de honra, à vista de todos. Aqui, na maioria
das edições do Novo Testamento se lê que é Pilatos que se senta no lugar de
honra, mas o verbo grego ‘kathidzein’ pode ser transitivo [fazer alguém se
sentar] ou intransitivo [sentar-se], exatamente como o verbo português
‘sentar’, que tanto pode ser intransitivo: ‘sentar no sofá’ como transitivo:
‘sentar o filho na cadeira’ (veja Dicionário Houaiss). Jesus ensanguentado no
lugar de honra do pretório: uma paródia cruel, um espetáculo horrível, de
péssimo gosto, uma vulgaridade.
Depois,
dentro do prédio, Pilatos ouve da boca de Jesus as seguintes palavras: meu
reino não é deste mundo. Não é um reino como você imagina (a palavra grega
‘kosmos’, comumente traduzida por ‘mundo’, aqui significa: ‘segundo o que se
costuma entender’). Ele explica: ’se meu reino fosse deste mundo (deste
sistema), meus servidores teriam lutado para que eu não fosse entregue aos
judeus. Mas meu reino não é daqui’. Em outras palavras: ‘você não está
em condições de compreender o que eu digo’. O reino de Jesus é ‘irônico’, faz
de conta que seja comparável aos reinos que estão por aí, mas na realidade
escapa à compreensão daqueles que militam nesses reinos. Pilatos fica meio
perdido e faz uma pergunta estúpida: Você então é rei? Jesus: É
você que diz que sou rei. Nasci e cheguei a esse mundo (aqui de novo a
palavra ‘kosmos’) para testemunhar a verdade. Quem procura a verdade
escuta minha voz. Agora Pilatos está totalmente desnorteado, apenas
salva as aparências dando uma de filósofo: O que é a verdade? (Jo,
18, 36-37). Assim termina esse ‘diálogo de surdos’.
8.
Um mestre sem doutrina.
Jesus
não ensina nenhuma doutrina. Observa-se, em suas falas, uma total ausência
daquilo que fariseus e letrados chamam de ‘doutrina’. Eles, na realidade, nada
mais fazem que lembrar aos camponeses que é preciso observar os 613 preceitos
do Código Levítico (principalmente os que dizem respeito aos impostos). Os
aldeões logo percebem a diferença entre a ‘doutrina’ dos letrados e a palavra
de Jesus. Gostam de ouvir alguém falar sem abordar questões de pureza e
impureza, sem lembrar a obrigação de ‘subir’ ao Templo para as festas e de
pagar os impostos estipulados. Jesus fala em pão, casa, filhos, sustento da
família, idosos, produção agrícola, trabalho de cada dia. Suas palavras são
direcionadas à vida cotidiana na aldeia: cuidados com a família, as crianças,
os vizinhos, a aldeia: ‘não querer ser maior que os outros, reagir contra o
desejo de enriquecimento, estar sempre disposto a servir’. Seu discurso se
assenta no chão da vida e toca diretamente a maior preocupação do povo aldeão:
o ‘pão de cada dia’, como mostra a oração ‘Pai Nosso’, que ele ensina a seus
discípulos. Pois o espectro da fome está por todo canto. No Evangelho de Marcos
se fala o tempo todo em ‘muitos pães, pães para todos, pão de cada dia’. Diante
do pão (ou da falta de pão), os filhos de Abraão são iguais aos ‘de lábios
impuros’, como se mostra na multiplicação de pães numa região fora da
Palestina. Todos necessitam de comida, israelitas e não israelitas. O ensino de
Jesus écompartilhar o pão (Mc 8, 14-21), ‘todos sentados em torno
da mesma mesa’. Uma ameaça irônica ao poder dos Doutores da Lei.
9. Um
legislador sem Lei.
Um
judeu observa basicamente três regras de comportamento diário: o kashrut, o
jejum e o repouso no sábado (há também a circuncisão, mas ela não incide em
obrigações diárias). O kashrut proíbe a ingerência de comidas não ‘kosher’, ou
seja, impróprios. O jejum significa a privação ou redução de alimentos em
determinados dias, enquanto a observância do sábado traz consigo a proibição de
executar tarefas, minuciosamente indicadas nos Livros Levítico e Deuteronômio,
no ‘sétimo dia’, o dia santo.
Em
Mc 10, 17-20, quando um jovem se ajoelha diante dele e pergunta: Bom
mestre, o que devo fazer para ganhar a vida eterna?, Jesus responde: ‘Você
conhece os mandamentos’(v. 19) e aí lembra os Dez Mandamentos. Mas não fala
em kashrut. Em Lc 10, 25-28 encontramos o mesmo procedimento. Um homem versado
em leis vem consultar Jesus, que lhe pede repetir o que já sabe desde a
infância: os mandamentos centrais do amor a Deus e ao próximo. Não se fala em
regulação de alimentos (v. 28).
Quanto
ao jejum, lemos em Marcos que os discípulos de João e os fariseus
observavam o jejum. Perguntavam então a Jesus: ‘por que seus discípulos não
jejuam? Por que comem e bebem, enquanto os de João nem comem nem bebem?’ (Mc
2,18).
Em
relação ao dia santo, a mesma liberdade: um dia de sábado, (Jesus) atravessou
um campo de trigo. Seus discípulos, ao andar, arrancavam espigas. ‘Olhe’,
disseram os fariseus ‘por que eles fazem o que é proibido no sábado?’. Ele
respondeu: ‘O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado’ (Mc
2, 23-27).
Fica
claro: a Lei de Deus não se identifica com os 613 preceitos da Lei judaica, que
sacerdotes e letrados recomendam sem cessar. Ela vai além dos preceitos formais
e toca o comportamento diante do próximo. Não se discutem questões de preceitos
legais, o tema é a ética e nisso reside toda a diferença.
10.
A dinastia de Pedro.
Para
terminar, comento a ironia de Jesus em relação a uma pretensa ‘dinastia de
Pedro’. Em Mt 16, 13-20 se lê que Jesus, andando com seus discípulos na região
de Cesareia de Filipe, quer saber de seus discípulos o que o povo diz a seu
respeito. Eles respondem que, para uns, ele é João Batista redivivo, para
outros Elias, Jeremias ou algum outro profeta. Mas a resposta que se destaca é
a de Pedro: ‘Você é o Ungido, o Filho de Deus vivo’ (v. 16).
Jesus responde: ‘Gostei, Simão Bar Jona. Nem a carne, nem o sangue lhe
ensinaram isso, mas meu Pai nos céus. De minha parte, eu lhe digo: Você é Pedro,
e sobre essa pedra edificarei minha igreja. As portas das
profundezas nada poderão contra ela. Eu lhe confiarei as chaves do reino dos
céus. O que você amarra na terra fica amarrado nos céus e o que você desamarra
na terra fica desfeito nos céus’. E, no final, ele disse a todos: ‘não digam a
ninguém que sou o Ungido’.
Há
de se considerar aqui que Mateus escreve por volta do ano 80, num período dos
mais deprimentes para os judeus: Jerusalém devastada, o Templo destruído, a
população da cidade dispersa. Grupos de letrados se reúnem para saber como agir
e desses encontros nasce o judaísmo rabínico. Nesse contexto complicado, os
seguidores de Jesus se sentem ameaçados de dois lados: pelos donos do poder (os
romanos) e pelos judeus ortodoxos. Mateus é um dos judeus dissidentes que
seguem Jesus e seu evangelho tem as marcas dos apertos em que o movimento de
Jesus se encontra. Por mais que ele deseje apresentar o movimento de Jesus como
autenticamente judeu e mostrar que Jesus é mesmo um verdadeiro ‘filho de
Abraão’, as suspeitas permanecem. É nesse sentido que se compreende a recomendação
de Jesus, no versículo 20: não digam a ninguém que sou o Ungido.
A
preocupação apologética de Mateus condiciona seu modo de apresentar a cena
entre Jesus e Pedro. Até certo ponto, ela obscurece o caráter jocoso da fala de
Jesus que está por baixo do texto do evangelista. É verdade: Mateus preserva o
trocadilho Pedro-pedra, assim como ele não deixa de se referir à imagem de uma
construção forte sobre um rochedo (que é Pedro), capaz de resistir às ameaças
das ‘portas do inferno’, a imagem de um Pedro guardião de chaves, ou seja, que
controla tudo que acontece nessa igreja-fortaleza e pode decidir à vontade,
pois ‘os céus’ concordam com tudo que ele faz. Mas o evangelista não põe em seu
devido relevo o caráter lúdico e mesmo irônico da louvação dirigida por Jesus a
Pedro. Para entender corretamente o texto, há de se tomar em conta que a
aspiração de participar de uma poderosa dinastia, ao lado do soberano Jesus,
não está longe de aspirações cultivadas entre os discípulos, como os evangelhos
de Mateus e Marcos deixam entender (Mt 20, 20-21; Mc 10, 35-37). Assim é
possível ver, no versículo Mt 16,18, não apenas um agradecimento bem-humorado e
mesmo irônico, dirigido a Pedro, mas também uma crítica sutil dirigida àqueles
discípulos que só pensam em glórias e triunfos.
Há
de se lembrar aqui que as imagens do reino, apresentadas no episódio em
questão, contrastam vivamente com numerosas imagens do reino que se encontram
nos evangelhos, que evocam invariavelmente a humildade e quase invisibilidade
de um projeto que é como um grão de mostarda, um simples campo que está à
venda, um fermento na massa, um tesouro escondido, mas também (e mais
sutilmente) o segredo das dez virgens sábias e a festa de meretrizes e
cobradores de impostos (Mt 21, 31). Um reino humilde, construído por
mini-salvações, mini-ressurreições e conversões cotidianas, que combina mal com
a ideia de uma dinastia que necessita de portas pesadas, chaves, portões,
pedras, amarras e guardas.
Há
outro detalhe que ajuda a compreender o tom irônico, escondido por baixo do
texto de Mateus: Jesus gosta de brincar com Pedro. Já no primeiro contato com
ele, no início do Evangelho de João, ele brinca: Olhando para ele (Pedro), disse:
Você é Simão, filho de João. Você se chamará Cefas (pedra) (Jo 1, 42).
Jesus intui em Pedro qualidades de liderança, fidelidade e entusiasmo. Pedro,
de sua parte, demonstra a mais incondicional lealdade a seu Mestre. Ele se
sente bem como discípulo (‘Rabi, é bom ficar aqui’: Mc 9, 5). Os
companheiros sabem da amizade entre ambos, mas não ignoram, por experiência,
que Pedro não é precisamente uma ‘rocha inabalável’. Muito pelo contrário: em
mais de uma ocasião, ele se mostra inexperiente, instável, impetuoso, ingênuo e
medroso. Depois de negar Jesus, no átrio do sinédrio, na noite fatídica do
processo contra seu Mestre, elechora amargamente (Mt 26, 75). Ele
precisa do apoio de Jesus. Certa feita, querendo imitar o Mestre, ele sai do
barco e começa a andar sobre as águas, mas de repente sente o
vento e começa a afundar (Mt 14, 27-32). De seu lado, Jesus também
procura conforto junto a Pedro, como na hora de sua agonia no Jardim das
Oliveiras (Mt 26, 40) e também quando, no último capítulo do Evangelho de João,
ele se mostra angustiado diante da eventualidade de seus projetos junto aos
camponeses da Galileia ficarem interrompidos. Nesse momento, é para Pedro que
ele apela, com grande insistência, quando pergunta, por três vezes
consecutivos: Pedro, você me ama? (Jo 21, 15).
Ainda
uma palavra acerca do termo ‘igreja’ (em grego ekklèsia), tal qual aparece em
Mt 16, 18. Trata-se de uma tradução do termo hebraico ‘knesset’, que significa
‘sinagoga’. Efetivamente, será possível pensar que Jesus, naquelas
circunstâncias, tenha em mente outra coisa que não a sinagoga judaica? Ele foi educado
na sinagoga e, quando se manifestou profeta, difundiu seu programa por meio de
sinagogas. ‘Minha sinagoga’, aqui, é a ‘sinagoga dissidente’ que ele planeja
formar. Uma sinagoga como as outras, em seus aspectos institucionais, mas que
traga uma nova mensagem, um evangelho.
Afinal,
a história dos primeiros anos do movimento de Jesus desmente a interpretação
institucional que se costuma dar à famosa frase ‘Tu és Pedro’. Pois, nos textos
neo-testamentários que temos à nossa disposição, Pedro não aparece como líder
do movimento de Jesus. Nos primeiros trinta anos após a morte de Jesus (entre
30 e 60), quem lidera o movimento é Tiago, seu irmão, que atua por meio da
congregação em Jerusalém, onde é muito estimado, e acaba sendo condenado à
morte por ordem do Sumo Sacerdote Ananus, em 62 dC. Pedro aparece nos textos
como quem cuida da saúde do povo abandonado e anda por vilarejos e aldeias a
‘expulsar demônios e sopros imundos’, seguindo o exemplo de seu Mestre. E o faz
com tanto sucesso que, por onde passa, ‘os doentes se alinham nas praças para
que, pelo menos, sua sombra passe por eles’ (At 5, 15-16). Na qualidade de
ajudante de Tiago, viaja a Antioquia da Síria, onde entra em choque com Paulo.
Eis o que os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos nos relatam.
Quem
apresenta Pedro como ‘papa’ é o historiador Eusébio de Cesareia, no século IV
dC. Historiador da Corte de Constantino, ele procura alinhar a história do
cristianismo ao padrão dinástico em voga na historiografia imperial
romana. Elabora uma lista de sucessivos bispos para todos os lugares
onde existem comunidades e o faz frequentemente de forma aleatória. Desse modo
remonta até as origens: Depois do martírio de Pedro e Paulo, o primeiro
a obter o episcopado na igreja de Roma foi Lino(História Eclesiástica, 3,
2). Hoje, peregrinos-turistas que visitam a Basílica de São Pedro em Roma,
leem, inscritas na imensa cúpula, as palavras ‘Tu es Petrus et super hanc
petram aedificabo ecclesiam meam’ (Mt 16, 18). Será que essas palavras são
entendidas por esses católicos no sentido em que Jesus as pronunciou?
6.
Por que temos tanta dificuldade em ler os evangelhos ironicamente?
O
problema provém de nossa educação religiosa. Os evangelhos nos foram
apresentados como oráculos infalíveis a proferir verdades eternas e doutrinas
imutáveis. Montou-se um enorme mecanismo, dentro do qual os evangelhos
funcionam como engrenagens que fazem os eixos se movimentarem. Não aprendemos a
situar os evangelhos em seus devidos contextos históricos, sociais, políticos e
psicológicos, o que nos levaria a descobrir seu caráter irônico. Mas, quando
partimos ‘em busca de Jesus de Nazaré’ (veja meu livro, publicado sob esse
título pela Paulus de São Paulo em 2016), nossa leitura dos evangelhos é capaz
de mudar. Hoje já dispomos de livros que não fogem ao enfoque irônico, como,
por exemplo, ‘Um Jesus cordial’ de Diego Irrarazaval (Paulinas, São Paulo, 2003)
ou ‘Um Jesus popular’ de Néstor Míguez (Paulus, São Paulo, 2013). Fora do
Brasil há muitos livros na mesma linha, como ‘Christ, a crisis in the life of
God’, de Jack Miles (Heinemann, London, 2001), ‘Festa dos Foliões’ de Harvey
Cox (Vozes, 1974), ou ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’ de José Saramago
(Companhia das Letras). Além de outros.
7.
‘Extra ironiam nulla salus’.
No
dia 18 de junho de 2017, o Cardeal Ravasi, presidente do Pontifício Conselho
para a Cultura, comentou, num artigo publicado no jornal italiano ‘Il Sole 24
Ore’, um livro do jesuíta alemão Hugo Rahner, onde se encontra a expressão:
‘extra ironiam nulla salus’. O cardeal explica que, para descobrir o Jesus
irônico nas narrativas evangélicas, o leitor tem de ser, ele também, imbuído de
espírito irônico: ‘Fora da ironia, não dá para ler corretamente os evangelhos’.
Essa é uma afirmação de peso. Quem lê as narrativas evangélicas numa
perspectiva hierática, mecanicista, dogmática, imutável e intocável,
dificilmente percebe a dimensão dramática e psicológica, profundamente humana,
dessa literatura, que apela a todos os homens, não só aos cristãos. Eis o que
escreve o Cardeal Ravasi e eu não tenho nada a acrescentar.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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