Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
A mensagem era esperada e temida. Quando
chegou, no entanto, a dor surpreendeu pela sua profundidade e força.
Ulpiano Vázquez Moro SJ estava morto. Perdera a luta contra o câncer que lhe
sugava as energias vitais há dois anos. E o vazio, a orfandade que deixava
atrás de si eram de um indizível e abrumador peso.
Em 1978, eu era estudante de Teologia na PUC-Rio. Avisaram-nos que
chegaria ao departamento para ensinar o Tratado da Trindade um padre espanhol
chamado Ulpiano. O nome nos fez imaginar alguém baixinho, calvo e já
entrado em anos. Foi, portanto, uma agradável surpresa quando aquele
espanhol alto, delgado e fidalgo entrou na sala de aula. Mais fascinante
ainda foi seu curso. Acompanhar-lhe o brilho e a originalidade do
pensamento, a profundidade da fé e a mística ardente transformavam cada aula em
uma experiência espiritual e intelectual inigualável.
A relação professor-aluna, transida de admiração, transformou-se em amizade
verdadeira e profunda, e posteriormente em discipulado espiritual. Sob sua
orientação segura de mistagogo experimentado fui iniciada na escola dos
Exercícios Espirituais de Santo Inácio uma, duas, três vezes, até realizar a
grande experiência dos 30 dias, inesquecível pela disciplina exigida e abundância
de graças recebidas. Aprendi a descobrir os traços da teografia que se ia
desenhando em minha alma pela arte inigualável do Espírito de Deus e a ela
responder ponderando as moções, os sentimentos interiores, os impulsos e
afetos.
Ulpiano era um mestre na arte de conversar. E as conversações espirituais
que mantínhamos nos retiros e orientações deixaram marcas indeléveis em mim e
foram configurando-me, outra, nova, inteira na estatura que a vocação e a
missão me traziam. A relação mestre-discípula foi se transformando em
outra identidade, comum e partilhada: a de companheiros de Jesus, apaixonados
por Seu Evangelho e Seu Reino. Começamos a trabalhar juntos, formando
pessoas, dando retiros, orientando espiritualmente a muitos, fazendo e ensinando
teologia em conjunto, abrindo a outros os caminhos por nós mesmos
trilhados.
Quanto mais o conhecia, mais me impressionava. Era talvez o homem mais completo
que já havia cruzado meu caminho. Pensador brilhante e extremamente
erudito, era professor que preparava cada aula como se fosse a única. Aplaudido
pelos alunos no final do curso, ria modestamente e procurava jamais colocar-se
em evidência. Místico ardente, era igualmente mestre espiritual que
ajudava na experiência de Deus desde as pessoas mais simples até as mais
requintadas e letradas. Pastor dedicado e incansável, foi exímio formador
de leigos cultos e inquietos, religiosos de ambos os sexos, e membros do povo
de Deus de condição extremamente simples e humilde. Para todos havia a
linguagem adequada, a palavra precisa, o olhar e a acolhida carinhosa.
Sacerdote devotadíssimo, guiou várias comunidades e paróquias no culto, na
doutrina e na unidade. Suas celebrações e homilias atraiam pessoas não só da
comunidade local, mas vindas de outras paragens, atraídas pelo fogo e a
inspiração que emanavam do pregador exímio, cheio de conhecimento e entusiasmo
pelo mistério de Deus.
Para mim, assim como para toda da minha família foi mais do que um irmão.
Era a presença amiga que celebrava ao redor da mesa de casa como também o
apreciador de uma saborosa lasanha regada a bom vinho ou, nos últimos anos, bom
uísque. Ia conosco passear nos lugares aprazíveis da cidade, ou ao cinema ver
um bom filme, ou passava dias em nossa casa de Petrópolis. Preparou e deu a
primeira Eucaristia a meus dois filhos menores. Foi padrinho de Crisma do
filho do meio. Concelebrou e pregou com palavras inesquecíveis na missa
de minha boda de prata. Celebrou o casamento de meus dois filhos maiores, batizou
minhas três netas.
No batizado de meus dois netos meninos não se encontrava aqui e sim em
Cuba. Ali fomos algumas dezenas de vezes durante dez anos, dando
Exercícios, cursos, oficinas e ajudando na formação do laicato da Ilha.
Íamos por várias cidades, experimentando dificuldades e cansaço, mas
trabalhando felizes pelo Reino de Deus. A experiência de viver no ambiente
único e meio mágico da Ilha caribenha fortaleceu a amizade e a comunhão na
busca do bem mais universal.
A notícia de sua doença caiu como um golpe duro. Foram muitas orações,
súplicas, promessas, esperanças. Alegria nos tempos de remissão, tristeza
nas recidivas. E sobretudo admiração crescente por sua coragem, destemor,
confiança. Sem uma queixa, avançava ao encontro da morte que o olhava nos
olhos, cada vez mais próxima. Visitei-o pela última vez uma semana antes
de seu falecimento. Magro, abatido e fragilizado pudemos conversar um
pouco.
Hoje, sinto-me irmã daquelas mulheres que foram ao túmulo de Jesus ao terceiro
dia e o encontraram vazio. Por que buscar entre os mortos aquele que está
vivo? Por que não abrir os olhos para a boa notícia de que ele estará
sempre vivo? Apesar da saudade, da ausência, como não sentir profundamente que
tudo que ensinou, semeou, doou, proclamou agora é flor, é fruto, é campo de
trigo que se faz pão e alimenta os famintos de esperança e de amor? Como não
crer que a missão gera descendência mais generosa e fecunda do que as estrelas
do céu e as areias do mar?
Por uma dessas brincadeiras divinas, surpreendentes e deliciosas, sua Páscoa se
deu no dia 22 de julho, quando a Igreja celebra Santa Maria Madalena, apóstola
dos apóstolos, aquela que chorava pelo Mestre perdido até reencontrá-lo no
pronunciar do nome: Maria. Assim reencontro Ulpiano hoje. Me chamo
Maria, pois esse era o nome pelo qual ele me chamava. E sentindo a
presença desse amigo e mestre morto e ressuscitado que me testemunha o Mestre,
Rei Eterno e Senhor Universal, sigo em frente. Enxugando as lágrimas e
olhando à frente, impelida pelo Espírito Consolador. A missão deve
continuar e nela estaremos juntos, como sempre e para sempre.
Maria Clara Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de "Deus amor: graça
que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
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