por Marcelo Barros
Para os povos da América Latina e Caribe, o mês de julho traz
recordações históricas importantes. No 26 de julho de 1953, ao conquistar o
quartel de Moncada, Fidel Castro e seus companheiros iniciavam a vitória da revolução
cubana contra a ditadura de Fulgencio Batista, apoiado pelo governo dos Estados
Unidos. No 19 de julho de 1980, os sandinistas entraram vitoriosos em Manágua e
derrotaram definitivamente a ditadura de Somoza.
Essas datas são marcantes. No entanto, para os cristãos
latino-americanos, certamente a memória mais
básica é a de que, em 17 de julho de 1566, falecia Bartolomeu de las
Casas, primeiro bispo de Chiapas, no sul do México. Ele foi o grande defensor
da dignidade dos índios contra o sistema colonizador e escravagista. Era um senhor
de escravos que se converteu à fé cristã e se tornou frade dominicano. Ele
constatou que os povos indígenas estavam sendo dizimados e os sobreviventes
escravizados, pelos conquistadores espanhóis e em nome da fé cristã. Isso o fez
defender a dignidade dos índios contra a escravidão. Diante do rei da Espanha e
do delegado do papa, ele pregou: nos corpos dos índios escravizados, é o
próprio Jesus Cristo que é explorado e maltratado pelos que se dizem cristãos.
Ao olhar a história, cinco séculos depois, podemos lamentar que, ao
protestar contra a escravidão indígena, Las Casas não tenha sabido denunciar o
próprio sistema colonizador. Alguns até o acusam de ter aceito que a escravidão
dos índios nas minas de prata e nos engenhos de cana de açúcar fosse
substituída pelo tráfico e escravidão dos negros africanos. Essa acusação não
procede porque, ao morrer em 1566, Las Casas não chegou a antever esse
problema. O tráfico de africanos sequestrados para ser escravos na América só floresceu
a partir das últimas décadas do século XVI. Seja como for, em nossos dias, os
escritos desse grande missionário são referência para uma nova concepção
intercultural de missão e de leitura da história a partir das vítimas e não dos
vencedores.
Atualmente, tem sido difundida uma espiritualidade cristã que se chama lascasiana.
Compreende a missão não como conquista de adeptos e sim como diálogo que
valoriza a presença divina em toda realidade humana. Por isso, respeita a
diversidade das culturas. A espiritualidade se fundamenta na realidade e tem
como objetivo não a religião em si e sim a vida de todas as pessoas,
especialmente aquelas que têm sua dignidade humana não reconhecida e seus
direitos humanos espezinhados.
Ainda em nossos dias, aqui no Brasil, povos indígenas continuam
massacrados, vítimas de um modelo de progresso que olha os índios como estorvo
para a concentração de terras, o agronegócio e os lucros das grandes empresas. Nesse
ano, no Mato Grosso do Sul e no Maranhão, a perseguição aos povos indígenas fez
diversas vítimas. Em abril, o massacre de índios Canela e um filme francês
sobre a perseguição aos Guarani Kaiowá foram notícias em todo o mundo.
Las Casas nos recorda que defender a vida e a liberdade dos índios, além
de ser uma questão de justiça humana é também uma exigência espiritual da fé
cristã. O papa Francisco tem repetido que não devemos aceitar projetos de
desenvolvimento que não levem em consideração o respeito aos índios, aos
migrantes e a todos os empobrecidos do mundo, vítimas desse sistema que, como
diz o papa, "é assassino". Em 1815, Simon Bolívar, o libertador da
pátria grande que é a América do Sul, em sua “Carta de Jamaica”, considera o elemento religioso como aglutinante
da alma americana. Ali, ele formula “a necessidade
urgente de uma união de nossos povos, ligados por elementos culturais e
religiosos comuns”. Viver isso hoje é retomar uma espiritualidade
lascasiana atualizada e libertadora.
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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