Por Marcelo
Barros
Quem
acompanha a crise social e política brasileira, assim como a realidade social
de países que se dizem cristãos, podem perceber que Deus tem sido sequestrado
por um grupo sem escrúpulos. Há séculos, religiosos usam o nome divino a seu
bel prazer e testemunham ao mundo um Deus cruel e contrário à imagem do Pai
amoroso e solidário que Jesus testemunhou e com o qual a maioria das tradições
religiosas concorda. O nome de Deus serviu para legitimar cruzadas,
inquisições, guerras santas e conquistas violentas. Nos anos 60, Dom Helder
Camara se lamentava de que os países ricos mais responsáveis pelas
desigualdades sociais do mundo se dizem cristãos. Bancos escrevem na parede o
nome de Deus. Impérios imprimem em suas células de dinheiro: Nós confiamos em
Deus". A um jovem que lhe disse: "Sou ateu", o bispo Pedro
Casaldáliga perguntou: "De qual Deus você é ateu?". Isso nos faz
compreender o cineasta Woody Allen quando afirma: "Deus deve ser um cara bom, mas parece dominado por amigos pouco
recomendáveis".
Nas últimas
décadas, pessoas de diversas tradições espirituais têm se consagrado a libertar
Deus dessas prisões que desfiguram o seu nome e a sua honra. Não podemos mais
aceitar ver o nome de Deus associado à perversidade do desamor. Um dos aspectos
mais tristes da atual crise brasileira é o papel que parlamentares e hierarcas
cristãos nela desempenham. É possível compreender que proprietários de grandes
empresas sejam favoráveis a leis que diminuam direitos dos trabalhadores pobres
e já explorados. Não podemos nos espantar se impérios patrocinam golpes de
Estado para garantir a manutenção da sua dominação sobre países periféricos. Não
é anormal que a embaixada norte-americana pague brasileiros ambiciosos e sem
ética, capazes de, no congresso e no governo, servir aos interesses de seus
patrões. No entanto, é difícil explicar a lógica pela qual parlamentares que se
dizem evangélicos aprovam em bloco a reforma trabalhista que viola direitos dos
pobres como a aposentadoria e torna o país ainda mais desigual e injusto. Isso
pode parecer coerente com grupos que creem:
Jesus é o caminho, mas o pastor da nossa Igreja é o pedágio. Mas, como explicar
que até alguns cardeais católicos foram vistos no palácio a visitar o
presidente? Como entender que bispos que se dizem pastores se mostram
insensíveis ao sofrimento dos mais pobres, atingidos pela medida que congela
gastos sociais por 20 anos e massacrados por tantas outras medidas desse governo surreal? Diante disso,
cristãos e não cristãos podem duvidar que eles pertençam à mesma Igreja do papa
Francisco que se solidariza com sindicatos e movimentos sociais. No entanto,
junto a esses hierarcas, há grupos cristãos na contramão do evangelho, no qual
Jesus afirma: "Quero a misericórdia e não o sacrifício, ou seja, a
religião cultual" (Mt 9, 13).
No século
VI, o papa Gregório Magno escrevia: "Existem
dois tipos de idolatria. Uma é adorar deuses falsos. O outro é corromper a
imagem do Deus verdadeiro e adorar o Deus Vivo de uma maneira falsa. Adora-se a
Deus de forma falsa quando a adoração não é baseada na prática da justiça e da
solidariedade".
Durante a
segunda guerra, em um campo de concentração nazista, Etty Hillesum, jovem judia
de 27 anos, escrevia em seu diário: "Aqui nessa realidade terrível,
descubro dentro de mim um poço muito profundo. Deus está no fundo desse poço.
Quero chegar até ele. No entanto, percebo que para isso, preciso cavar e
retirar muito lixo acumulado (lixo depositado pela própria religião). Só após retirar
muito entulho, consigo acessar esse Deus que está no mais profundo do meu ser. Então,
lhe direi: Meu Deus, nessa situação em
que estamos aqui, sei que você não pode nos ajudar. Se alguém pode ajudar o
outro, serei eu que tenho de ajudar você, que está sendo julgado mal. Eu é que
tenho de ajudá-lo a não ser visto como culpado ou envolvido de alguma forma
nessa iniquidade que sofremos".
Na
realidade atual brasileira, o nome de Deus tem sido vilipendiado. Na noite da
votação do impedimento da presidente na Câmara, vários deputados foram votar
com a Bíblia na mão e gritaram que votavam em nome de Deus. Posteriormente, a imprensa
noticiou que, em Nova York, quando foi à reunião da ONU o próprio Temer
declarou publicamente que a decisão de derrubar a presidenta teve como objetivo
possibilitar a aprovação das reformas econômicas desejadas pela elite. Nesse
ano, a cada votação do Congresso, a bancada que usa o nome de Deus o faz contra
o povo e contra a justiça. Da parte das Igrejas cristãs, só uma minoria de
bispos e pastores (menos de um terço do episcopado católico do país) têm se
pronunciado do lado dos pobres e dos seus direitos. Deus precisa ter seu nome
resgatado da lama em que foi jogado. Está na hora em que cada pessoa de fé é
chamada a ligar a sua espiritualidade ao compromisso de solidariedade social. É
preciso que pessoas de Deus, de qualquer religião e quem busca uma
espiritualidade e ética de amor, se unam aos movimentos sociais, para que não
prevaleça o consenso dos maus. Que, no Brasil, se possa de novo acreditar na
palavra que Deus afirmou através do profeta Miquéias: "Já te disse o que quero
de ti: é só que ponhas em prática a justiça, vivas a solidariedade e caminhes
na presença de Deus" (Mq 6, 8).
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