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segunda-feira, 3 de julho de 2017

DESEJO MIMÉTICO: A ESPIRAL QUE NÃO TEM FIM


  Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 


             Mimetizar é sinônimo de imitar.  Assim, aquele que vê no outro um comportamento que lhe agrada, procura imitá-lo para ser como o outro.  Porém não é tão simples assim a mimetização ou imitação.  Mimetiza-se pelo desejo de ser como o outro que se admira.  Mas igualmente para adquirir o que o outro possui: beleza, poder, inteligência.  Ou até para anular o outro, absorvendo-o na espiral da violência à qual a mimetização desenfreada conduz.

            O mimetismo traz consigo a rivalidade e a competição. Os seres humanos imitam uns aos outros em tudo, inclusive no desejo. O resultado é que escolhem os mesmos objetos e competem por eles. Paradoxalmente, portanto, a mesma força imitativa que une as pessoas também as afasta. A teoria mimética afirma que esse fenômeno mal compreendido é a mais importante causa da violência humana, e que a vingança é a forma mais importante assumida por ele. 
            Assim como a imitação de um herói ou um santo é um dinamismo positivo, que libera as melhores energias que cada um ou cada uma tem dentro de si, assim também o mimetismo reprodutor de violência e opressor da alteridade pode conduzir a uma espiral de rivalidade violenta e vingativa, que é extremamente nociva e desencadeia mecanismos de opressão e morte.

            A vingança ilimitada e contínua pode chegar a destruir a espécie se não for detida a espiral por ela desencadeada. A menos que algum antídoto apareça. Paradoxalmente, o antídoto se origina nos mesmos impulsos miméticos que causam o problema. Tal como as enfermidades infecciosas ou endêmicas se curam inoculando no organismo enfermo o mesmo vírus ou bactéria que provocou a infecção ou a epidemia, assim também o antídoto contra a violência mimética deve ser buscado nas origens da mesma.

            Somente a vítima da violência mimética pode deter sua espiral.  E detê-la como?  Pelo perdão, pelo não ressentimento, pela não reprodução ad infinitum da violência.  Assim, somente será possível resgatar a partir dos escombros ocasionados pela violência mimética um horizonte de esperança e de paz para todos, inclusive para aqueles que descarregam sobre a vítima sua violência represada em desejos miméticos inalcançáveis.

            Em um momento cultural e civilizatório no qual temos a impressão de caminhar sobre escombros, com tudo o que constituía nossa segurança jazendo em pedaços atirados ao chão, é salutar relembrar essa teoria mimética da qual o antropólogo francês René Girard foi o grande elaborador.

            E o que nos é recordado a partir dessa teoria é que toda salvação, toda esperança, toda chance de reconstruir um novo mundo possível vem não dos poderosos, dos líderes, dos grandes e dos fortes.  Mas dos pequenos, dos vulneráveis, daqueles que sofrem as consequências dos desmandos da crise civilizatória e, apesar disso, ainda têm capacidade de acolhida e perdão.

            Quem serão esses?  Certamente os pobres, que em sua luta inglória de cada dia ainda encontram ânimo para dançar, cantar, fazer festa e regozijar-se.  Aqueles que, diante da morte do outro, assumem sua família, agregando mais bocas às que devem ser alimentadas por seus magros proventos.

            Também as crianças, que não pediram para nascer e de repente se veem no epicentro da loucura em que se transformaram certos países do planeta. São essas vítimas inocentes da insensata violência que grassa por todos os lados.  Quem não se recorda do menino Aylan, que jazia como se dormisse, mas estando em verdade morto nas areias da Turquia?  Ou da menina com os braços levantados diante da câmera do fotógrafo crendo ser esta uma arma de fogo?  Ou do menino que perdeu o irmão na guerra e, coberto de pó, olhava atônito para o infinito quando nada fazia sentido em sua cabeça? Ou dos dois bebês mortos no colo do pai pelas armas químicas?  Desde sua inocência mortalmente atingida, essas crianças são incapazes de ressentimento ou vingança e interrompem a espiral da violência enlouquecida que os atinge e os mata. 

            Dos rostos das vítimas não ressentidas sobe o único sinal de vida sobre a qual a morte não tem poder.  E entre essas vítimas destaca-se o rosto do Mediador por excelência, a Testemunha fiel que transformou em amor todo o ódio que se descarregou sobre sua pessoa.  O Crucificado já. Ressuscitado lembra a todas as vítimas ainda crucificadas que o mimetismo só leva à morte e o perdão é a única via para que a vida retome seu curso e a alteridade possa triunfar, refulgindo no rosto do Outro. 

Maria Clara Lucchetti Bingemer
  é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
A    teóloga é autora de “O  mistério e o mundo – Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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