Por Leonardo Boff
Em sua encíclica sobre “o Cuidado da
Casa Comum” o Papa Francisco submeteu a uma rigorosa crítica o clássico
antropocentrismo de nossa cultura a partir de uma visão de uma ecologia
integral, cosmocentrada, dentro da qual o ser humano comparece como parte do
Todo e da natureza. Isso nos convida a revisarmos nossa compreensão do
ser humano nos limites desta ecologia integral. Cabe enfatizar que as
contribuições das ciências da Terra e da vida, subjacentes ao texto papal, vem
englobadas pela teoria da evolução ampliada embora não a cita explicitamente.
Elas nos trouxeram visões complexas e totalizadoras, inserindo-nos como um
momento do processo global, físico, químico, biológico e cultural.
Após todos estes conhecimentos
nos perguntamos, não sem certa perplexidade: quem somos, afinal enquanto
humanos? Tentanto responder, vamos logo dizendo : o ser humano é uma
manifestação da Energia de Fundo, donde tudo provem (Vácuo Quântico ou
Fonte Originária de todo Ser); um ser cósmico, parte de um universo,
possivelmente, entre outros paralelos, articulado em onze dimensões (teoria das
cordas); formado pelos mesmos elementos físico-químicos e pelas mesmas
energias que compõem todos os seres; somos habitantes de uma galáxia média, uma
entre duzentas bilhões; circulando ao redor do Sol, estrela de quinta
categoria, uma entre outras trezentas bilhões, situada a 27 mil anos luz do
centro da Via-Láctea, no braço interior da aspiral de Órion; morando num
planeta minúsculo, a Terra, tida como um super organismo vivo que funciona como
um sistema que se autoregula, chamado Gaia.
Somos um elo da corrente sagrada
da vida; um animal do ramo dos vertebrados, sexuado, da classe dos
mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos hominidas, do gênero homo, da
espécie sapiens/demens; dotado de um corpo de 30 bilhões de células e 40
bilhões de batérias, continuamente renovado por um sistema genético que se
formou ao largo de 3,8 bilhões de anos, a idade da vida; portador de três níveis
de cérebro com cerca cem bilhões de neurônios: o reptiliano, surgido há
300 milhões de anos, que respondes pelos movimentos instintivos, ao redor do
qual se formou o cérebro límbico, responsável pela nossa afetividade, há 220
milhões de anos, e por fim, completado pelo cérebro neo-cortical, surgido há
cerca de 7-8 milhões de anos, com o qual organizamos conceptualmente o mundo.
Portador da psiqué com a mesma
ancestralidade do corpo, que lhe permite ser sujeito, psiqué habitada por
todo tipo de emoções e estruturada pelo princípio do desejo, com
arquétipos ancestrais e coroada pelo o espírito que é aquele momento da
consciência pelo qual se sente parte de um Todo maior, que o faz sempre aberto
ao outro e ao infinito; capaz de intervir na natureza, e assim de fazer
cultura, de criar e captar significados e valores e se indagar sobre o sentido
derradeiro do Todo e da Terra, hoje em sua fase planetária, rumo à noosfera
pela qual mentes e corações convergirão numa Humanidade unificada.
Ninguém melhor que Pascal (+1662)
para expressar o ser complexo que somos: “Que é o ser humano na natureza? Um
nada diante do infinito, e um tudo diante do nada, um elo entre o nada e o
tudo, mas incapaz de ver o nada de onde é tirado e o infinito para onde é
atraido”. Nele se cruzam os três infinitos: o infinitamente pequeno, o
infinitamente grande e o infinitamente complexo (Chardin). Sendo isso tudo,
sentimo-nos inteiros mas incompletos e ainda nascendo pois percebemo-nos cheios
de virtualidades que forçam por vir à tona. Estamos sempre na pré-história de
nós mesmos. E apesar disso experimentamo-nos um projeto infinito que reclama
seu objeto adequado, também infinito, que costumamos chamar de Deus ou de outro
nome.
E somos destinados à morte.
Custa-nos acolher a morte como parte da vida e a dramaticidade do destino
humano. Pelo amor, pela arte e pela fé pressentimos que a morte não é um fim,
mas uma invenção da própria vida para nos transfiguramos através dela. E
suspeitamos que no balanço final das coisas, um pequeno gesto de amor
verdadeiro e incondicional vale mais que toda a matéria e a energia do universo
juntas. Por isso, só vale falar, crer e esperar em Deus se Ele for sentido como
prolongamento do amor, na forma do infinito.
Pertence à singularidade do ser
humano não apenas apreender uma Presença, Deus, perpassando todos os seres,
senão entreter com ele um diálogo de amizade e de amor. Intui que Ele seja o
correspondente ao infinito desejo que sente, Infinito que lhe é adequado e no
qual pode repousar.
Esse Deus não é um objeto entre
outros, nem uma energia qualquer entre outras. Se assim fosse poderia ser
detectado pela ciência. E não seria o Deus da experiência oceânia que não cabe
em nenhuma fórmula. Ele comparece como aquele suporte, cuja natureza é
Mistério, que tudo sustenta, alimenta e mantem na existência. Sem Ele tudo
voltaria ao nada ou ao Vácuo Quântico de onde irrompeu. Ele é a força
pela qual o pensamento pensa, mas que não pode ser pensada. O olho que tudo vê
mas que não pode ser visto. Ele é o Mistério sempre conhecido e sempre por
conhecer indefinidamente. Ele perpassa e penetra até as entranhas de cada ser
humano e do inteiro universo.
Podemos pensar, meditar e
interiorizar essa complexa Realidade, feita de realidades. Mas é nessa direção
deve ser concebido o ser humano. Quem ele é e qual é o seu destino derradeiro
se perde no Incognoscível, sempre de alguma forma cognocível, que é o espaço do
Mistério de Deus ou do Deus do Mistério. Somos seres sempre sendo
indefinidamente. Por isso é uma equação que nunca se fecha e que permanece
sempre em aberto. Quem revelará quem somos? Ninguém nos quadros do mundo
assim como existe e de uma ecologia por mais integral que se apresente.
Leonardo Boff é articulista do JB on
line filosofo e escritor
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