Por Eduardo
Hoornaert
1. Uma
data que é um símbolo.
Aproxima-se
uma data, 31 de outubro, em que está sendo rememorada, não só por luteranos e
católicos, mais igualmente por todos e todas que compreendem sua importância
histórica, o que aconteceu na Alemanha quinhentos anos atrás, quando o frade
católico (agostiniano) Martinho Lutero, segundo reza a tradição, teria pregado
na porta da igreja do castelo de Wittenberg, na Alemanha saxônica, véspera da
Festa de Todos os Santos, uma larga faixa em que ele teria escrito à mão 95
teses de ‘protesto’ contra as autoridades religiosas de seu tempo. Uma outra
versão reza que se tratou de uma carta enviada ao Bispo de Mainz, contendo dito
protesto. Pouco importa: o fato é que 31 de outubro fica gravado na memória do
cristianismo como o dia em que um católico ousou se levantar contra a
hierarquia de sua igreja e conseguiu fazer valer seu protesto. Resta saber em
que consiste esse protesto e como ele se encaixa na história de dois mil anos
de cristianismo.
2.
Complexidade do tema.
O tema
é complexo e aqui procuro evitar de me perder no labirinto dos dados, por
exemplo, acerca da postura de Roma (do Vaticano e do Papa Leão X), da política
dos Príncipes alemães, da guerra dos camponeses (Thomas Münzer), das
divergências com Erasmo, das vicissitudes políticas na Alemanha, entre outros.
Cada um desses assuntos merece, sem dúvida, um aprofundamento, mas aqui me
limito a tentar pegar o cumprido fio que liga Lutero à história multissecular
do cristianismo, especificamente a sucessão de iniciativas pastorais ao longo
desses dois mil anos. Isso, decerto, constitui uma aproximação limitada, mas
que ajuda a situar Lutero no lugar que lhe compete na evolução do cristianismo
e mesmo da sociedade humana em geral.
3. A
ponta do fio: a pastoral do medo.
Até o
século III, a pastoral cristã se baseia na esperança, ou seja, na imagem de um
Deus Pai. Mas quando o teólogo Orígenes (primeira parte do século III) afirma
que a ideia de Deus Pai elimina a ideia do inferno, ou seja, de uma condenação
eterna decretada por Deus, se inicia uma longa discussão que termina com a
condenação oficial de Orígenes em 533. Articula-se então uma nova pastoral,
baseada no medo. Aparece Agostinho que, ao realçar a complexidade e
pecaminosidade do ser humano (contra a simplificação otimista dos pelagianos),
abre as portas para uma pastoral do medo, de consequências problemáticas. A
expressão ‘pastoral do medo’, cunhada pelo historiador francês Jean Delumeau,
diz respeito a uma dimensão preponderante da pastoral durante longos séculos,
particularmente durante a Idade Média. Diante de populações rurais, quase
exclusivamente analfabetas, os pregadores dão livre curso a palavras e imagens
que amedrontam as pessoas com as ‘eternas penas do inferno’. Com isso, eles
pretendem levar as pessoas à prática dos sacramentos. O ponto negativo consiste
no fato que reaparece o Deus implacável e vingativo das crenças ancestrais, o
‘castigo de Deus’, o ‘pecado mortal’. O Deus Pai do evangelho cede
lugar ao Deus ‘juiz dos vivos e dos mortos’. Doravante, as
populações rurais só ouvem falar em pecado, morte, último juízo, céu e inferno,
enquanto cresce exponencialmente o poder do clero.
4. Um
corretivo ambíguo: o purgatório.
No
século XI aparece o tema do purgatório, um corretivo diante das pregações
traumatizantes. O purgatório é apresentado como o caminho ao céu para a maioria
dos defuntos, pois poucos são os que conseguem viver sem algum pecado. O
purgatório é uma ‘indulgência’ divina, mas, para que funcione, há de se ‘assaltar’
o céu por preces, romarias, missas, esmolas, além de generosas doações para
mosteiros. Há de se implorar insistentemente a misericórdia divina e conseguir
chamar a atenção dos poderes divinos. Nesse sentido se pode dizer que o
purgatório funciona como um corretivo ambíguo diante da anterior virulência dos
pregadores do inferno, pois o tema fortalece a posição do clero nas sociedades
e torna sua ação praticamente indispensável na vida das pessoas, já que o clero
é dono dos sacramentos, os ‘sinais visíveis da salvação invisível’.
5. A
missa pelos defuntos.
São os
monges do Supermosteiro de Cluny (sul da França) que se encarregam, a partir do
século XII, a propagar por toda a Europa Ocidental a pastoral do medo. E o
fazem por meio da divulgação da ‘missa pelos defuntos’. A missa é desvirtuada
de seu significado eucarístico original e se celebra na ‘intenção’ da redenção
da alma de defuntos, em troca do pagamento de uma ‘espórtula’. Aparecem
diversas modalidades de missas pelos defuntos, como a missa de corpo presente,
a missa de sétimo dia, a missa de aniversário de morte, as missas gregorianas,
as missas ‘perpétuas’ (a serem celebradas ‘até o fim dos tempos’), em troca de
doações em terras, terrenos, viveiros, florestas de caça, animais de criação ou
moedas ao Mosteiro de Cluny ou a algum priorado dependendo dele. As ‘intenções
de missa’ viram moeda de troca entre celebrantes. O procedimento é tão
bem-sucedido em termos financeiros que Cluny se torna o mosteiro mais poderoso
da França. O Abade de Cluny é o homem mais rico do país. Os numerosos priorados
cluniacenses, espalhados por toda a Europa, passam a organizar a venda
sistemática de ‘indulgências’ e a formar monges executivos do programa.
6. A
inquietação
Tudo
isso inquieta muita gente, como comprovam as histórias diversificadas de Pedro
Valdo no Sul da França, Jan Hus na Boêmia, John Wycliff na Inglaterra, Ulrich
Zwingli e João Calvino na Suiça, nomes que apenas indicam as pontas de um iceberg.
As tentativas de mudança, embora não encontrem viabilidade concreta, formam um
caldo de contestação surda e tenaz, que explica em grande parte o sucesso de
Lutero. Com ele, a bolha explode. Depois de passar por uma crise aguda de
insegurança e angústia (na época chamada ‘escrúpulo’), Lutero empreende,
unicamente apoiado em forças próprias e na leitura das Cartas do apóstolo
Paulo, uma profunda e dolorosa psicanálise, que resulta na emergência de uma
nova personalidade. Emerge um Lutero seguro de si, que não tem mais medo de
nada e de ninguém. Nasce um grande líder.
7.
‘Tanto faz’.
O
frade agostiniano encontra na Carta aos Romanos, do apóstolo Paulo, a regra da
‘indiferença’, do ‘tanto faz’. Escreve o apóstolo: ‘circuncisão ou
incircuncisão, tanto faz; carne oferecida a ídolos ou comida kashkrut, tanto
faz; seguir ou não seguir a Lei (a Torá desvirtuada), tanto
faz’. Lutero traduz a indiferença paulina em termos próprios: ‘As
obras, ou seja, as rezas, romarias, penitências, sacrifícios, as imensas filas
de peregrinos em Roma, a venda de indulgências, a construção da Basílica de São
Pedro, a opulência dos cardeais, a casa de câmbio dos Fugger [que troca moedas
alemães em moedas válidas no Vaticano], tudo isso me deixa indiferente. Meu
assunto é outro. O que me interessa é a liberdade (Die Freiheit eines
Christenmenschen)’.
8. A
quebra do pensamento único.
O
significado histórico de Lutero consiste na quebra de um pensamento único
(hegemônico) e na aparição, nas sociedades humanas, de ‘poliedros’ (palavra
cara ao Papa Francisco), ou seja, de formas limitadas por polígonos, formas
multifacetadas. O mundo não é formado por ‘globos’ uniformes, (não se pode ler
Lutero na perspectiva de uma globalização do mundo), mas por polígonos. O
polígono é uma figura formada por um determinado número de ângulos e lados,
sendo que cada figura tem sua consistência própria, sua dignidade e seu direito
de ser.
Pensando
bem, podemos dizer que Lutero é um teólogo católico que protesta, um católico
protestante. Passando a vida toda em ambiente católico e se relacionando com
católicos, ele entendeu seu protesto como uma tentativa de reforma da igreja
católica. O protestantismo propriamente dito lhe é posterior. O que importa
entender é que Lutero significa a quebra de um pensamento cristão único que
vigorou durante mil anos, grosso modo entre os anos 500 e os
anos 1500. Os polígonos formados, em diversas circunstâncias de tempo e espaço,
pela quebra do pensamento único, conservam suas peculiaridades. Eles não se fundem
em globos uniformes mas apresentam peculiaridades. Lutero abre a porta para
que, com o tempo, apareça um islamismo poligonal, um hinduísmo poligonal, um
catolicismo poligonal, etc. Um processo de longa duração, que,
vivido em profundidade, opera a derrubada da pastoral do medo, assim como anima
o cultivo da pastoral do diálogo, da misericórdia e da esperança.
9.
Um intermezzo de quinhentos anos.
Tanto
o protestantismo histórico como o catolicismo histórico, do modo em que se
articularam ao longo dos últimos quinhentos anos (o período após Lutero), podem
ser interpretados como um intermezzo histórico, na base de
um modus vivendi condicionado por tempo e espaço. A Paz de
Westfália (1648), assinada em duas cidades diferentes (pois os líderes
protestantes e católicos se recusaram a se reunir na mesma cidade), é uma
iniciativa necessária após a longa sucessão de guerras sangrentas, mas carrega
consigo a marca da provisoriedade. Ela está na origem do estado moderno, com
suas qualidades e defeitos. Um defeito flagrante está na fundamentação da
filiação religiosa típica do estado moderno, expressa na frase ‘cuius régio,
illius et religio’: o ‘dono’ da região é por direito ‘dono’ da
filiação religiosa nela praticada. Os súditos (fiéis) seguem a religião do
príncipe, do rei, do imperador, do pai, do patriarca, do ‘coronel’, do pastor,
do padre. Nascido em 1930, eu fui criado nesse regime: sou católico porque nasci
num país católico. São, pois, quinhentos anos de tempo intermediário, um tempo
necessário para que os intentos profundos da reforma luterana possam fermentar
nas sociedades e se manifestar com o tempo. O que estamos vivenciando nos dias
de hoje, em termos de filiação religiosa, decorre das decisões tomadas em 1648.
10.
Tensões salutares.
Mas a
grande data, a ser comemorada, é 31 de outubro de 1517. O que aconteceu naquela
data nos ensina, até hoje, que o mundo é feito de tensões salutares, que o
tempo de uma oposição professada entre protestantismo e catolicismo está
passando e que não há nada definitivo nem perfeito neste mundo. É o que ensinam
as estatísticas, que nos mostram aspectos da realidade que os discursos
costumam ocultar. Lendo essas estatísticas começamos a compreender
que não há vida nem sociedade sem tensões, que a tensão pertence à lógica das
gerações humanas, precárias, imperfeitas, frágeis e passageiras. Talvez sem
pensar na repercussão a longo prazo de seu posicionamento em 1517, Lutero
introduziu o princípio da tensão num universo que vivia a ilusão da
concordância universal. Hoje, luteranos, católicos, anglicanos, batistas,
presbiterianos, pentecostais, adventistas, evangélicos (para só falar de alguns
poliedros cristãos) formam um enorme leque, o que acarreta inevitáveis tensões,
que podem se tornar salutares quando bem compreendidas.
11.
Estatísticas.
As
estatísticas, mais que as considerações teóricas, nos revelam um mundo em
contínua mutação, repleto de tensões a serem vividas, seja de forma salutar,
seja de forma traumática (como acontece hoje na Europa com os imigrantes). Aqui
enumero algumas estatísticas acerca de mutações em curso dentro do universo
cristão. Elas falam por si.
- Em
1938, 95 % dos brasileiros se diziam católicos. Em 2017, são 52 %. Em 1940, 2,
6 % dos brasileiros se diziam evangélicos, hoje são 32 %. O cidadão terá de
conviver com as tensões inevitáveis que essa mudança acarreta. O católico terá
de encarar uma estatística ainda mais difícil: o catolicismo, no Brasil, é mais
seguido entre velhos (64 %), nordestinos (62 %) e em municípios de até 50 mil
habitantes (61 %). Isso em contraste com os 52 % da estatística geral.
- Além
disso, há os que se professam ‘sem religião’. Hoje, 98 % dos brasileiros se
dizem acreditar em Deus, mas 12 % declaram não seguir nenhuma filiação
religiosa. São chamados, de forma provisória, imprecisa e insatisfatória, de
‘agnósticos’, ‘ateus’, ‘sem religião’, ‘descrentes’. Na Europa são 25 %. É o
segmento que cresce mais. Esse dado merece maior aprofundamento.
- Nos
Estados Unidos e na Europa, mais da metade, tanto dos protestantes como dos
católicos, está convencida que entre seus respectivos credos há mais semelhança
que diferença. Assim pensam 78 % dos protestantes na Alemanha, por exemplo.
- Na
Europa, a faixa dos ‘sem religião’ não deixa de crescer. Na Holanda são 48 % da
população, na Noruega 43 %, na Suécia 41 %, na Bélgica 37 %.
- Na
Alemanha, a terra de Lutero, existem mais católicos (42 %) que protestantes (28
%). O ‘sem religião’ representam 24 %.
- A
ida semanal à igreja praticamente desapareceu. Os ‘fregueses’ são 3 % na
Dinamarca, 7 % na Alemanha, 8 % na Bélgica. Na Europa em geral são menos de 10
%.
- Há
casos sempre mais frequentes de protestantes que recebem a comunhão numa missa
católica e de católicos que participam de um culto protestante. Uma prática
atualmente estimulada pelo Papa Francisco. Por todo canto se
celebram cultos ecumênicos.
Observo
que esses dados, exceto os dos dois primeiros pontos (que dizem respeito ao
Brasil), são fornecidos pelo Pew Research Center de Washington. Você pode
acessá-los pela Internet.
12.
Uma palavra de agradecimento a Lutero.
Termino
com uma palavra de agradecimento ‘póstumo’ a Lutero (póstumo de cinco
séculos!). Ao lançar o desafio da emergência de sociedades capazes de conviver
com tensões e eventualmente tirar proveito delas, ele merece nossos aplausos.
Pois aqui vale a palavra de Dom Helder Câmara: ‘Se você discorda de mim, você
me enriquece’. Digo então: ‘Martinho, repouse em paz! Você fez um bom
trabalho!’.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É
membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina
(CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas
origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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