por
Ivone Gebara
Escrevo
sobre o corporativismo
do clero religioso embora seja o corporativismo dos políticos quando
defendem seus próprios interesses individualistas que esteja na ordem do dia.
Entretanto, sobre este corporativismo os
meios de comunicação têm se debruçado à exaustão e nosso estômago e razão
aguentado demasiadas agressões, sobretudo diante do que o contexto atual tem
nos mostrado. Além disso, muitos especialistas têm escrito análises
interessantes sobre esse fenômeno que revela a inconsistência de nossas
instituições políticas nas quais manipuladores atuam a céu aberto.
Hoje, nesse mesmo contexto, quero escrever sobre o corporativismo do clero,
do clero
religioso, aquele que se diz submisso a vontade de Deus, aquele
que se acredita guardião da tradição do bem e da justiça, aquele que se
auto-identifica como arauto da mensagem de Jesus e fiel à sua postura ética. A
ele outros ‘religiosos’, embora sem regras e sem ordens clericais, se juntam
formando a gloriosa extirpe dos leigos servidores da moral tradicional e
da Igreja.
Representam talvez as teologias
fundamentalistaspor oposição às teologias pluralistas como
escreve Boaventura Sousa Santos em seu livro “Se Deus fosse um ativista dos
direitos humanos”. Cortez 2014. Acreditam, talvez sem muita
reflexão, que sua religião
cristã é fundada numa Revelação divina eterna. Essa
Revelação contém em si toda a História e por isso, segundo eles pode julgá-la
segundo seus preceitos. Impõem, excluem e perseguem de forma sutil ou agressiva
todas as pessoas que pleiteiam formas plurais de expressão da mesma fé cristã. Creem-se
os únicos verdadeiros anunciadores da vontade divina que segundo eles é
monolítica e intervêm na sociedade
pluralista impedindo que seus membros reflitam de forma
crítica sobre o mundo atual que é o nosso. Tal comportamento existiu no
passado, mas no presente se reveste de formas especiais de manifestação. Ao
criticá-los não estou destituindo-os de seu direito de existir, mas sim da
usurpação que fazem do direito dos outros de pensar e agir de forma diferente.
Estou criticando sua guerra ao pluralismo constitutivo
de todas as vidas e em especial da vida humana nas suas múltiplas
manifestações. Estou criticando seu fechamento dentro da comunidade cristã tornada
quase um gueto. Negam o simples fato de que habitamos como diferentes o mesmo
mundo e este dado não pode ser eliminado sob o risco de eliminarmos forças
vitais.
O corporativismo
clerical é de direita, de esquerda, de centro e de muitas
outras tendências conforme os interesses em jogo. Reproduzem as mesmas
polarizações da política miúda caracterizada pela divisão de poderes; acusam-se
mutuamente de conservadores e progressistas, etiquetam-se sem conhecer a origem
histórica das etiquetas que colam uns nos outros. Apresentam-se ao público como
mensageiros da ‘palavra de Deus’, como obreiros do Evangelho e em
posse de um verniz religioso manipulam as massas com seus discursos, ameaças e
muitas vezes com suas litúrgicas apresentações artísticas. Atraem multidões
para si e estas os aplaudem e os glorificam quase como semideuses. Constroem
comunidades virtuais que atacam outras como se fossem torcidas organizadas
violentas e destrutivas de pessoas e instituições. Incitam ao ódio como forma
de defesa da fé.
Tudo virtualmente em nome de Deus, mas tudo com consequências desastrosas na
vida de muitas pessoas.
Influenciam o agir de autoridades políticas e religiosas que
inebriadas pelo número de seus seguidores confundem a popularidade superficial com
a verdade. Eximem-se da responsabilidade de pensar os novos rostos e os novos
desafios que constituem a sociedade
plural em que vivemos e convivemos.
Alguns dentre eles, mesmo em época de fome generalizada, usam
anéis e tiaras douradas. Vivem em casas confortáveis, quase palácios. Vestem-se
de púrpura e sentam-se nos primeiros lugares de mesas cheias de iguarias
saborosas oferecidas por indivíduos de grande prestígio social. Têm a reputação
de sábios, instruídos na excelência do saber teológico espiritual capaz
de conduzir o povo que julgam incapaz de seguir seu próprio caminho sem a ajuda
de seus ‘legítimos pastores’. Eles mesmos estão convencidos de sua
superioridade e, embora obrigados pela falsa humildade que lhes foi
ensinada, tentam aparecer como iguais diante daqueles que os ouvem e se
submetem a eles.
Hoje, talvez, já não obedeçam mais de fato a um poder central,
mas cada um se faz ‘poder’ à sua imagem e semelhança imaginando que obedece a
uma ortodoxia da verdade. Têm blogs, páginas, faces, seguidores, televisões a
seu dispor... Disputam espaços na mídia ou convidam outros para fazê-lo em seu
nome. Quando criticam alguém ou algum evento, imediatamente se auto-inocentam
em nome de sua responsabilidade na preservação do povo de Deus ou da tradição
que dizem defender. Hipocrisia e covardia não lhes faltam apesar da
simplicidade e sociabilidade que acreditam ter e manifestar.
Atacam pessoas que pensam ou se apresentam de forma diferente
apontando para a diversidade do
mundo de hoje e para a necessidade de repensar a tradição cristãpara
esse novo tempo. Vivem atacando os outros e, sobretudo as outras em nome de sua
verdade que já não resiste mais à multifacetária realidade na qual vivemos.
Refiro-me especialmente a ignorância desses doutos senhores em relação ao feminismo, à teologia feminista, ao
movimento de mulheres, lésbicas, gays, trans e etc.
Refiro-me ao seu racismo escondido
e à sua xenofobia disfarçada.
Refiro-me à sua misoginia flagrante
ou disfarçada. Refiro-me às suas críticas e à falta de percepção quase proposital
do mundo em que vivemos assim como das justas reivindicações de direitos de
muitos grupos. Controlam as consciências assim como os meios de comunicação o
fazem sem que percebamos seu controle e sua nefasta influência.
Apelam para o respeito e agem com desrespeito. Apelam para os
bons costumes e agem imaginando que apenas seus costumes são bons. Falam de um
mundo mítico e ludibriam as pessoas com esperanças vãs. Falam de justiça, mas
não movem uma palha para que ela aconteça.
Fazem-me lembrar do profeta Isaias embora o
contexto seja outro. “Esse povo é rebelde, constituído de filhos desleais, de
filhos que se recusam a ouvir a Verdade e dizem aos videntes: ‘ não queirais
ver’ e aos seus profetas: ‘ Não procureis ter visões que nos revelem o que é
reto’. Dizei-nos antes coisas agradáveis, procurai ter visões ilusórias.
Afastai-vos do caminho, apartai-vos da vereda, fazei desaparecer da nossa
presença a Santidade”. Isaias 30,
9 a 11.
E Isaias continua
denunciando a mentira, a fraude, a tortuosidade dos caminhos apresentados como
caminhos de justiça e de Deus. De que Deus?
Mas de quem estou falando? O que estou querendo denunciar? Estou
falando da má fé, da surdez, da cegueira, do dogmatismo de tantos clérigos e
‘leigos’ em relação aos fundamentos de sua fé. Quero denunciar a máfia da religião,
mesmo daquela que se apresenta de forma digna e defensora dos pobres. Ela
também se esconde como amante e proprietária da verdade e não é capaz de
reconhecer os limites de suas afirmações. Quero especialmente denunciar a perseguição
que muitas mulheres têm
sofrido nas Igrejas
cristãs e particularmente na Igreja Católica romana
através da censura a seus trabalhos, através da proibição de sua expressão nos
espaços ditos de Igreja,
através da anulação de cursos e conferências de que estão sendo vítimas.
Quando um bispo ou
um cardeal ou
o núncio proíbem
uma professora de cumprir sua responsabilidade em assessorias previamente
aceitas e, sobretudo a convite de comunidades locais esses senhores apelam para
que se evite o escândalo das novas idéias radicais e se mantenha a fé e os
costumes. Fé de que tempos e a partir de que costumes? Não percebem a
indissociabilidade de nossos corpos, de nossos gêneros, de nossas
diferentes culturas e tempos. Não percebem a contradição dos poderes que dizem
representar?
Na realidade me parece que essas autoridades estão no mesmo ato
da proibição dos cursos e conferências declarando a comunidade cristã como
incapaz, como ‘menor’ para julgar seus processos formativos. Estão declarando
a comunidade cristã incapaz
de discernimento e de análise do mundo em que vivem. Estão impedindo-a de
escolher seus rumos mesmo que apareçam mais tarde como equivocados. Talvez essa
seja a parte mais triste dessa triste história de nossa atualidade eclesial. Ou
seja, a exclusão da comunidade
cristã do direito de pensar, do direito de escolher, de
assumir sua responsabilidade diante da vida corrente e de seus múltiplos
desafios e transformações.
O sistema
religioso vigente apesar de algumas aberturas mantêm-se
através de poderosas ‘estruturas de ordem’. A partir delas se afirmam normas,
comportamentos, ensinamentos como se fossem realidades objetivas indiscutíveis.
Por isso mesmo, esses senhores ‘pastores’ julgam-se donos de suas ‘ovelhas’,
únicos capazes de encontrar os bons caminhos para seu ‘rebanho’, únicos capazes
de orientar suas escolhas e as formas
políticas que escolheram para se orientar na sociedade
atual. Não estaria na hora de mudar a imagem das ovelhas submissas a um pastor
e introduzir a imagem dos amigos/as que conversam juntos, que discernem e que
olham para a necessidade uns dos outros?
Sem dúvida, através das autoridades religiosas, o ‘Santo
Oficio’, hoje Congregação
para a Doutrina da Fé, continua sub-repticiamente exercendo
suas funções através de outras formas de coerção. Na maioria das vezes não há
mais o decreto romano de interdição vindo diretamente do Vaticano, mas o decreto
romano se faz local e se expande de forma assustadora tomando posse de lugares,
de instituições, de meios de comunicação onde apenas ‘uma verdade’ pode ser
transmitida e ensinada. Recusam-se ao diálogo, não querem conversar sobre as
questões atuais mesmo quando são convidados por suas vítimas. Fazem ouvidos
surdos a esses apelos.
Às vezes, chegam a crer que entendem de todos os assuntos a
partir de sua leitura das Escrituras e
de sua teologia. Controlam corpos, definem comportamentos, definem teorias,
julgam a arte e a literatura, determinam mediações sociológicas e filosóficas,
sem o menor diálogo com as comunidades
plurais que constituem as igrejas. A discussão que reduz
as questões de gênero à ideologia e a crítica ao feminismo como destruidor da
família estão nessa linha. Da mesma forma a nota da Arquidiocese de Porto Alegre em relação à Exposição do
Santander cultural “Queer museu” (11/9/2017) torna-se mais um
exemplo do que estou querendo denunciar. Ao mesmo tempo em que falam de
combater o preconceito falam do respeito às minorias. Quais preconceitos
combatem? A quais minorias se referem? E qual o respeito que dedicam aos seus
fiéis e não fiéis? Dizem que o ‘museu cultural queer’ é
uma agressão a fé e ao corpo. Mais uma vez, qual fé e qual corpo?
Entretanto, não criticam os que são dogmáticos defensores da
ordem estática. Não chamam a atenção à sua ação destrutiva, às guerrilhas que
organizam pela internet para desabonar pessoas e instituições. Não impedem
sua violência
física e simbólica. Não proíbem e não condenam esses
malvados súditos de expressarem seu ódio
pelos ‘diferentes’ em meio a essa profunda confusão em que
vivemos. Estes malvados não querem ouvir outras vozes, não querem conhecer
outras realidades. Estão convencidos que agem segundo a ordem de Deus e que
essa ordem imutável trará a salvação para todos.
Talvez muitos dirão que confundo as coisas e que há que
distinguir os bons hierarcas dos grupos incontroláveis. Há que distinguir, mas
nessa ‘salada’ que é a nossa tudo se confunde, sobretudo quando as autoridades religiosas não
enfrentam as questões que afligem as comunidades.
Os tradicionalistas podem pensar de seu jeito e segundo sua
escolha, mas não podem impor esse caminho para aquelas e aqueles que nascendo
ou acolhendo uma comunidade católica como
umas das referências de sua vida se vejam obrigadas/os a calar diante da
pretensa hegemonia de interpretação teológica e ética que as autoridades
impõem.
O corporativismo
clerical mantém as injustiças contra todas e todos que se
sentem excluídos das formulações teológicas e políticas dos hierarcas e de seus
sustentadores. O corporativismo
clerical mantém a censura às novas ideias e decide o
que acolhe e o que rejeita no seio das comunidades cristãs. Elas não têm voz e
nem vez para se organizarem de forma diferente.
O baixo
clero, facilmente se defende e acusa o alto clero em
relação ao que foi proibido. Mas sempre acabam se submetendo. Fazem corpo entre
si e, mesmo se no corpo haja dissidências teóricas ou apenas retóricas, seu
lamento muitas vezes parece falso como uma desculpa de cortesia e sem
fundamento real. Mesmo pessoas as mais bem intencionadas envolvem-se nessas
discussões e acabam se limitando a apoios formais que na realidade não produzem
nenhum efeito de revisão e mudança no comportamento do clero e de seus
cúmplices e subordinados. Não assumem sua responsabilidade pessoal na mudança.
Estão sempre a jogar para o outro a responsabilidade pelo que está acontecendo
e em última análise apoiam-se em Deus, pois afirmam agir segundo sua vontade ou
segundo as Escrituras.
Nessa linha descartam levianamente tudo o que parece ser diferente de seu
conceito de injustiça
social. Não percebem que a injustiça é entranhada em
diferentes comportamentos humanos, até o mais cotidianos, até os mais
litúrgicos, os mais domésticos. Isentam-se das chamadas responsabilidades
menores aquelas que têm a ver com o mundo doméstico e de suas mantenedoras
enquanto se mostram proclamadores de sua justiça social. Escolhem sua forma de
justiça sem perceber a interdependência entre elas. E, é nesse ‘bom e salutar’
espírito que acabam destruindo a tradição ética dos Evangelhos e
tornando o cristianismo inviável para aqueles que não se enquadram na ordem
metafísica perfeita dos funcionários de Deus.
A propaganda antifeminista que
encabeçam é a atração mais exuberante de concordismo em relação a uma ‘pequena
tradição’ e, a meu ver, um alimento suculento entregue aos fascismos políticos de
nosso tempo. Os preconceitos contra as mulheres aumentam a violência contra
elas e incitam ao ódio às minorias étnicas e sexuais que constituem o chamado
‘povo brasileiro’. Um fosso se abre no interior das igrejas cristãs.
Cada vez mais perdem membros oficialmente identificados à instituição. Diante
do obscurantismo de seus líderes leigos ou clérigos há um notável abandono ou
um recuo em relação às conquistas de um humanismo plural e respeitoso da
diferença.
Não pretendo que eliminemos o pluralismo de
direita, de esquerda ou de centro. Gostaria que eliminássemos as formas de exclusão e destruição de nós mesmos.
Gostaria que percebêssemos que o direito à diferença é um direito vital e
quanto mais o outro é diferente mais tenho que respeitá-lo e esperar que me
respeitem. O respeito não é a conivência com o mal e não é também o ataque
mortífero àqueles que não pensam como eu. Aceitar o paradoxo da vida, aceitar
que nenhum pensamento explica todas as vidas e, além disso, como já dizia Hannah Arendt em
vários textos de ‘Compreender’
(Companhia das Letras, 2008) que ‘ a realidade se apresenta diretamente ao
homem como incerta, incompreensível e imprevisível’. Por isso não conseguimos
resolver nossos problemas a partir dos conflitos do pensamento, das morais, dos
partidos políticos. Há que desenvolver em nós um ‘coração de carne’, sensível à
dor do outro, sensível a diferença do outro que me atormenta e ao mesmo tempo é
condição da vida comum. Nenhuma pessoa pode se erigir em dona da verdade...
Somos todos caminhantes e não há caminhos bons e verdadeiros antecipadamente.
Sem nenhuma pretensão a ter razão ouso apenas pensar e propor de novo o
respeito efetivo à diversidade.
Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É uma das principais defensoras da Teologia Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73 anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática
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