Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Em 31 de outubro comemoraram-se os 500 anos de um fato que marcou e
redirecionou a história do Cristianismo. Martinho Lutero, monge
agostiniano alemão, tornou públicas as 95 teses através das quais protestava
contra vários procedimentos da Igreja Católica, sobretudo a venda de
indulgências. Começava aí o movimento protestante.
Outra versão dos fatos diz que Lutero afixou suas teses à porta da Igreja do
Castelo de Wittberg, na Alemanha. Mas segundo indicam pesquisas mais recentes,
ele simplesmente as enviou a seus superiores. Elas então começaram a
circular e a movimentar os ânimos dentro da Igreja. E a ganhar
adeptos. Tanto que se tornaram outra Igreja, diferente da católica, e
deram lugar ao movimento chamado Reforma.
O protestantismo é caracterizado por algumas afirmações que diferem da proposta
católica. Entre estas se destacam o que se chama comumente em Teologia as
três “solas”: Sola fides, sola gratia, sola Scriptura. Ou seja, só a fé,
só a graça, só a Escritura.
Sola
fide, ou só a fé significa que a justificação, realizada somente por Deus,
é recebida apenas e unicamente pela fé, sem qualquer interferência ou
necessidade de atos e iniciativas humanas, mesmo boas. No entanto, na
teologia protestante clássica, a fé que salva é sempre evidenciada pelas boas
obras, que são seu fruto.
Afirmando a primazia da fé, o protestantismo se
contrapõe ao princípio católico baseado sobretudo na Epístola de Tiago de que
“a fé sem obras é morta”. Entende-se aí que o que salva são as boas obras
e não a fé sem as obras.
Ao defender a primazia absoluta da fé que só pode crer e jamais produzir a
salvação, Lutero se coloca frontalmente contra o poder das indulgências e
orações que nada acrescentariam à obra que só Deus pode realizar no ser humano
ao mesmo tempo justo e pecador, que seria a sua justificação.
Sola
gratia ou só a graça é o ensinamento de que a salvação vem por graça
divina , sem nenhum mérito por parte do ser humano e não como algo que este,
pecador, merece. A salvação é um dom imerecido que Deus dá por causa de
Jesus. Esta doutrina é o oposto do que seria a doutrina católica das boas
obras, pelas quais o fiel pecador se aperfeiçoaria e adquiriria méritos
purificadores que o aproximaria de Deus. Para o protestantismo da
Reforma, Deus é o único que age na graça, e por isso a graça é sempre eficaz,
pois vem d´Ele e não tem qualquer cooperação por parte do ser humano.
Novamente estão aqui a graça divina e as obras em contraposição, afirmando o
protestantismo de Lutero que a única iniciativa da salvação provém de Deus por
sua graça e que o ser humano não pode “trabalhar” por sua própria salvação, devendo
apenas acolhê-la como dom imerecido.
Sola
Scriptura ou só a Escritura é o ensinamento de que a Bíblia é a única
palavra autorizada e inspirada por Deus, e constitui a única fonte para a
doutrina cristã, sendo acessível a todos. Lutero beneficiou-se da então
recente descoberta de Gutenberg, a imprensa escrita, e multiplicou as cópias da
Bíblia impressa em alemão, devolvendo-a às mãos dos fiéis. O
protestantismo afirma igualmente que a Bíblia não exige interpretação fora de
si mesma, ao passo que o catolicismo ensina que a Bíblia só pode ser
autenticamente interpretada pelo magistério da Igreja, composto pelo Papa e
pelos bispos sucessores dos apóstolos.
Enquanto os protestantes nas Escolas Dominicais aprofundavam-se na leitura e
conhecimento da Sagrada Escritura, os católicos deviam contentar-se com as
histórias sagradas que forneciam algo, uma pequena parcela, do conteúdo
bíblico, já que o texto literal não era posto em suas mãos. Isso era livre
exame e, portanto, “coisa de protestante”.
O Concílio Vaticano II, ocorrido em meados do século XX, reviu a atitude e as
posições do catolicismo, sobretudo em relação à Escritura e, seguindo o
movimento bíblico que já acontecia em seu interior, recomendou o uso e o estudo
da Escritura por parte dos fiéis católicos. Assim, houve uma disseminação
enorme dos círculos bíblicos, grupos de estudos bíblicos e a Escritura passou a
fazer parte do cotidiano dos católicos.
O Concílio igualmente, em mais de um de seus documentos, reconhece a
necessidade e mesmo a urgência do ecumenismo, que consiste na aproximação entre
católicos e protestantes, chamados a buscar mais o que os une do que aquilo que
os separa com vistas a construir maior comunhão que resulte na única Igreja de
Cristo.
Hoje, 500 anos depois, aqui estamos nesta luta bonita de construir
comunhão. Gratos somos os católicos à Reforma de Lutero, que abriu as
portas para maior liberdade dentro da Igreja e tanto fez por maior
aproximação nossa da Palavra de Deus. Felizes são igualmente os
protestantes, que em um diálogo sempre maior com a “Católica” e Universal
Igreja de Cristo Senhor e Salvador, alargam seus horizontes e vivem uma
salvação livre e discernida, mas igualmente feita sinal e sacramento para o
mundo inteiro.
De minha parte, só tenho a agradecer à Reforma de Lutero, que formou na retidão
da fé e da justiça o homem que é meu esposo há quarenta e oito anos. E
que igualmente me deu os magníficos alunos, mestrandos e doutorandos que tive a
graça de conhecer nestes mais de 30 anos de magistério teológico.
Celebremos os 500 anos da Reforma. Os motivos são muitos, sólidos e
belos. Soli Deo Gloria!
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de
“O mistério e o mundo” (Editora Rocco).
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