Por Maria Clara
Bingemer
Atribui-se a Melanie
Klein, psicanalista austríaca conhecida como pós-freudiana, a afirmação de que
quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso. Para a
pioneira e criadora da psicanálise em crianças, o pensamento é algo tão fundamental
para o ser humano e tão complexo que não é tão somente uma atividade
intelectual, mas totalizante e vital.
Por isso mesmo, pensar é
uma atividade perigosa e arriscada. Mobiliza não apenas a mente e o
raciocínio, mas os afetos, as emoções, deixando emergir novas sínteses
elaboradas a partir da reflexão sobre experiências vividas na crueza do
encontro com a própria humanidade e a diferença do outro.
Simone Weil, filósofa e
mística francesa, em sua experiência de trabalho na fábrica como condição prévia
para pensar as condições do trabalho moderno, deu-se conta de que ao longo da
semana e do duro trabalho nos fornos da indústria metalúrgica francesa, sua
capacidade de pensar se atrofiava. Durante o fim de semana, os
pensamentos voltavam dispersos para na segunda feira sofrerem novo golpe e
enfraquecerem-se mais. Concluiu, então, que toda pessoa submetida àquele
ritmo sem uma interrupção que lhe permitisse restaurar-se acabaria despojada de
sua humanidade e transformada em uma besta de carga.
Weil percebeu que o acesso
ao conhecimento impediria que os operários fossem expulsos da vida digna que um
trabalho não escravo poderia proporcionar-lhes, dando-lhes direitos e condições
decentes de existência. Por isso, era preciso impossibilitar-lhes o conhecimento
ou reduzi-lo ao mínimo, a fim de que as portas da vida em plenitude não lhes
fossem abertas. Se começassem a pensar, chegariam à conclusão de que as
fábricas modernas os transformavam em coisas e se rebelariam sobre suas
condições de vida.
Todas essas reflexões me
ocorrem a propósito da celeuma que se levantou por ocasião da visita da
filósofa estadunidense Judith Butler ao Brasil. Foram feitos
abaixo-assinados contra sua vinda, protestos, rituais semelhantes a verdadeiros
autos da fé medievais, com direito a fogueira e gritos contra aquela que seria
a bruxa, a feiticeira que viria derrubar os valores de um povo cheio de moral e
zeloso pelos bons costumes.
O conhecimento que a
Professora Butler veio trazer provoca medo e insegurança. Por quê?
Porque abre as mentes para novas possibilidades e aciona o pensamento para que
inicie a jornada em direção ao conhecimento libertador. Mas seus
detratores são tão obtusos e violentos que sequer se informam corretamente
sobre os fatos que criticam e contra os quais protestam.
É fato que Judith Butler é
uma das maiores, senão a maior autoridade sobre teoria de gênero no
mundo. Mas a conferência que vem dar no Brasil não é sobre gênero e sim
sobre sionismo e o conflito entre Israel e Palestina. O livro que lança pela
Editora Boitempo: Caminhos Divergentes. Judaicidade e Crítica do Sionismo trata
justamente disto e não da teoria queer, da qual é grande
especialista.
O efeito da chuva de
protestos contra ela e seu pensamento não se fizeram esperar. Sua
conferência teve lotação esgotada e a fila de pessoas querendo assistir sem
poder entrar era enorme. Talvez tivesse passado mais despercebida, atraindo
apenas audiências acadêmicas e especializadas, não fosse a grita monumental que
a precedeu e a pôs em relevo em todas as mídias e redes sociais.
Não creio que seja
obrigatório concordar com Judith Butler e sintonizar com seu pensamento quanto
à forma e conteúdo. Tampouco é mandatório achar fascinantes suas posições
e comungar plenamente com elas. No entanto, o conhecimento por ela
produzido deseja comunicar-se e tem direito de encontrar espaço para
sê-lo. Impedir isso de acontecer é, por um lado, desrespeitar a pensadora
e, por outro, tratar seus ouvintes e receptores como idiotas incapazes de
discernir e pensar com a própria cabeça.
Parece incrível que isso
aconteça ainda no século XXI, quando já vai ficando distante no tempo a
pretensão de Immanuel Kant de despertar a humanidade do sono dogmático em que
se encontrava mergulhada. O tempo passou, a modernidade chegou, entrou em
crise, já nadamos em águas pós-modernas, mas o obscurantismo parece que teima
em retornar.
Não será levantando
barreiras de acesso ao pensamento que se construirá uma humanidade melhor. Pelo
contrário, o paraíso artificial onde a mesma estará confinada sem o acesso
livre ao conhecimento é muito mais semelhante à letargia do sono dogmático
denunciado por Kant e outros filósofos. Deste paraíso é digno e justo ser
expulso. Pois do outro lado estará não o pecado que mata, mas a verdade
que liberta, oferecendo-se como fruto saboroso e maduro à “mastigação” do
conhecimento que fará a humanidade caminhar e evoluir.
Deixemos Judith Butler
falar. Abramos as portas aos pensadores vários que desejam comunicar o
fruto de suas reflexões. Não somos obrigados a concordar com eles ou com
elas. Mas sim convidados a não permanecer na paradisíaca zona de conforto
da ignorância e adentrarmos o caminho duro, mas belo da aventura do
conhecimento, guiados por essas mãos ou por outras.
Por Maria Clara
Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga acaba de
lançar sua nova obra, Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora
PUC-Rio e Reflexão Editorial.
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