Por Frei Betto
A simples
pronúncia ou leitura da palavra silêncio causa espanto hoje em dia. Quem busca
silêncio? Quem sabe fazê-lo? Sintoma que evidencia quão ruidosa é a sociedade
pós-moderna.
Vivemos na era
panóptica, na qual é difícil escapar de assédios alheios na forma de ruídos.
Ruídos não se resumem a sons captados pela audição. Nossos cinco sentidos são
permanentemente afetados pela avalanche de informações, imagens, apelos publicitários
etc. E a voracidade de querer fazer tudo ao mesmo tempo e estar em permanente
conexão digital nos faz experimentar como frustração nossos próprios limites.
Estar só se
tornou uma experiência ameaçadora. Tememos a solidão, talvez pelo medo do encontro
consigo mesmo. “Amai o próximo como a si mesmo.” Simples. Quem não se gosta não
se sente à vontade para estar só. E tem mais dificuldade para amar o próximo.
Náufragos sem
boia em pleno mar revolto, urge nos apegar a algo, encontrar urgentemente uma
alteridade virtual. Pode ser a TV, o rádio, alguém no facebook ou alguma coisa
que nos entretenha e impeça que o silêncio se instaure.
O silêncio é
quebrado pela ansiedade e a imaginação, “a louca da casa”. E também por
símbolos, logotipos, outdoors, linhas arquitetônicas de mau gosto. A poluição
visual desgasta o espírito. A cidade encobre a sua beleza com a propaganda que
sujeita o olhar à solicitação incessante.
Em matéria de
dependência, a predominância é do celular. Repare no metrô, no ônibus, no
aeroporto, em restaurantes e shoppings. Ninguém está consigo mesmo. Quase todos
surfam nas redes digitais, muitas vezes envolvidos em contatos desprovidos de
afeto e empatia. Pessoas que se tornam objetos de seus objetos, impossibilitadas
de se assumirem como sujeitos, incapazes de repetir com Cecília Meireles em
“Serenata”: “Permita que agora emudeça:/que me conforme em ser sozinha.”
O silêncio
constrange quem não sabe acolhê-lo. Só é suportável quando o sono aplaca a
audição. Imagine uma refeição na qual todos se calam em torno da mesa. Seria
suficiente para sentir o peso opressivo do silêncio. No entanto, outrora os
monges se alimentavam calados. A única voz no refeitório era a do leitor,
responsável por nos nutrir a mente e o espírito enquanto cuidávamos do corpo.
Costumo
indagar do jovem casal que se prepara para o matrimônio: vocês são capazes de
estar sós em uma sala, e permanecer em silêncio sem que um se sinta
constrangido pelo fato de o outro não dizer nada? Se a resposta é negativa,
alerto para a imaturidade da relação. E do risco de a alteridade dar lugar à
submissão de um ao outro.
O silêncio
perturba porque nos remete à desafiadora via do mergulho em nós mesmos.
Desnudar-se frente ao espelho da subjetividade. Desprover-se de todos os
artifícios que nos convocam à permanente exposição. Ousar viajar para a morada
interior na qual habita aquele que não sou eu e, no entanto, é ele quem revela
a minha verdadeira identidade. Então, o silêncio se faz epifania.
Há pessoas tão
densas de silêncio que, sem nada dizer, bradam alto. O silêncio do sábio é
eloquente, como o do santo é questionador. Ao se calarem, excluem-se da
competição verborrágica. Por isso, sobrepõem-se aos demais. Guardam para si as
pérolas que os outros atiram aos porcos.
Saber se calar
é sabedoria. Só quem conhece a beleza do silêncio, dentro e fora de si, é capaz
de viajar por seu próprio mundo interior - pacote impossível de ser encontrado
em agências de turismo. Trata-se de uma exclusividade dos sábios e das
tradições espirituais milenares.
Como os poetas
expressam o indizível, convém se deixar impregnar pelos versos de Arnaldo
Antunes em “O silêncio”: “Antes de existir a voz /
existia o silêncio / o silêncio foi a primeira coisa que existiu / um silêncio
que ninguém ouviu / astro pelo céu em movimento / e o som do gelo
derretendo / o barulho do cabelo em crescimento / e a música do vento / e a
matéria em decomposição / a barriga digerindo o pão / explosão de semente sob o
chão / diamante nascendo do carvão / homem pedra planta bicho flor / luz
elétrica tevê computador / batedeira, liquidificador / vamos ouvir esse
silêncio meu amor / amplificado no amplificador / do estetoscópio do doutor /
no lado esquerdo do peito, esse tambor.”
Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do
silêncio” (Rocco), entre outros livros.
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