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quinta-feira, 16 de novembro de 2017

SILÊNCIO



Por Frei Betto

       A simples pronúncia ou leitura da palavra silêncio causa espanto hoje em dia. Quem busca silêncio? Quem sabe fazê-lo? Sintoma que evidencia quão ruidosa é a sociedade pós-moderna. 

       Vivemos na era panóptica, na qual é difícil escapar de assédios alheios na forma de ruídos. Ruídos não se resumem a sons captados pela audição. Nossos cinco sentidos são permanentemente afetados pela avalanche de informações, imagens, apelos publicitários etc. E a voracidade de querer fazer tudo ao mesmo tempo e estar em permanente conexão digital nos faz experimentar como frustração nossos próprios limites.

       Estar só se tornou uma experiência ameaçadora. Tememos a solidão, talvez pelo medo do encontro consigo mesmo. “Amai o próximo como a si mesmo.” Simples. Quem não se gosta não se sente à vontade para estar só. E tem mais dificuldade para amar o próximo.

       Náufragos sem boia em pleno mar revolto, urge nos apegar a algo, encontrar urgentemente uma alteridade virtual. Pode ser a TV, o rádio, alguém no facebook ou alguma coisa que nos entretenha e impeça que o silêncio se instaure.

       O silêncio é quebrado pela ansiedade e a imaginação, “a louca da casa”. E também por símbolos, logotipos, outdoors, linhas arquitetônicas de mau gosto. A poluição visual desgasta o espírito. A cidade encobre a sua beleza com a propaganda que sujeita o olhar à solicitação incessante.

       Em matéria de dependência, a predominância é do celular. Repare no metrô, no ônibus, no aeroporto, em restaurantes e shoppings. Ninguém está consigo mesmo. Quase todos surfam nas redes digitais, muitas vezes envolvidos em contatos desprovidos de afeto e empatia. Pessoas que se tornam objetos de seus objetos, impossibilitadas de se assumirem como sujeitos, incapazes de repetir com Cecília Meireles em “Serenata”: “Permita que agora emudeça:/que me conforme em ser sozinha.”

       O silêncio constrange quem não sabe acolhê-lo. Só é suportável quando o sono aplaca a audição. Imagine uma refeição na qual todos se calam em torno da mesa. Seria suficiente para sentir o peso opressivo do silêncio. No entanto, outrora os monges se alimentavam calados. A única voz no refeitório era a do leitor, responsável por nos nutrir a mente e o espírito enquanto cuidávamos do corpo.

       Costumo indagar do jovem casal que se prepara para o matrimônio: vocês são capazes de estar sós em uma sala, e permanecer em silêncio sem que um se sinta constrangido pelo fato de o outro não dizer nada? Se a resposta é negativa, alerto para a imaturidade da relação. E do risco de a alteridade dar lugar à submissão de um ao outro.
       O silêncio perturba porque nos remete à desafiadora via do mergulho em nós mesmos. Desnudar-se frente ao espelho da subjetividade. Desprover-se de todos os artifícios que nos convocam à permanente exposição. Ousar viajar para a morada interior na qual habita aquele que não sou eu e, no entanto, é ele quem revela a minha verdadeira identidade. Então, o silêncio se faz epifania.

       Há pessoas tão densas de silêncio que, sem nada dizer, bradam alto. O silêncio do sábio é eloquente, como o do santo é questionador. Ao se calarem, excluem-se da competição verborrágica. Por isso, sobrepõem-se aos demais. Guardam para si as pérolas que os outros atiram aos porcos.

       Saber se calar é sabedoria. Só quem conhece a beleza do silêncio, dentro e fora de si, é capaz de viajar por seu próprio mundo interior - pacote impossível de ser encontrado em agências de turismo. Trata-se de uma exclusividade dos sábios e das tradições espirituais milenares.

       Como os poetas expressam o indizível, convém se deixar impregnar pelos versos de Arnaldo Antunes em “O silêncio”: “Antes de existir a voz / existia o silêncio / o silêncio foi a primeira coisa que existiu / um silêncio que ninguém ouviu / astro pelo céu em movimento  / e o som do gelo derretendo / o barulho do cabelo em crescimento / e a música do vento / e a matéria em decomposição / a barriga digerindo o pão / explosão de semente sob o chão / diamante nascendo do carvão / homem pedra planta bicho flor / luz elétrica tevê computador / batedeira, liquidificador / vamos ouvir esse silêncio meu amor / amplificado no amplificador / do estetoscópio do doutor / no lado esquerdo do peito, esse tambor.”

Frei Betto é escritor, autor do romance “Aldeia do silêncio” (Rocco), entre outros livros.

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