Dia virá, mais cedo ou mais tarde, em que
terá fim este tempo sombrio do coronavirus. E seremos convidados a avaliar suas
consequências e sequelas. Que mudanças terão acontecido na vida dos indivíduos
e de toda a Família Humana?
No dia 19 de março deixei a capelinha onde
moro, na Comunidade do Coque, e afixei um cartaz na porta de saída: "estou
me mudando para o Convento de S. Francisco, estarei de volta em 15 dias".
Já lá se foram 5 meses, e outros se seguirão, sem prazo de encerramento. Em
meio a surpresas, medos e incertezas, que lições aprendi?
Durante o isolamento da quarentena,
reaprendi antigas lições de meus formadores. Uma delas: o silêncio e a solidão
voluntária são indispensáveis para o crescimento espiritual das pessoas. Pude
comprovar esta verdade nestes meses em que sobrou-me tempo de ler, meditar,
escrever e contemplar o mundo com a clara visão que a distância proporciona. .
Por outro lado, escutei o anjo da guarda me advertindo: cuidado com a
acomodação! É muito fácil ser santo e passar esta imagem quando se está
protegido pelas paredes domésticas, longe dos desafios e seduções do mundo. No
entanto, o mundo é morada de Deus tanto quanto os conventos, mosteiros e
templos. Os Evangelhos apresentam Jesus, a maior parte do tempo, caminhando
pelas ruas e praças, pelas casas e feiras, pelos montes e colinas, por todos os
lugares onde seu povo vivia, sofria e lutava. "Eu vim para servir",
proclamava Ele.
Será por isso que sinto esta comichão
permanente na planta dos pés me chamando para os espaços lá de fora, onde minha
missão é testemunhar o Deus da vida? Com certeza, no calor da luta, sentirei
necessidade imperiosa de retornar ao "deserto interior" e me nutrir
de espiritualidade, sem a qual toda luta, em nome de Deus, malogra.
Nenhum dia da quarentena me desliguei do
noticiário local, nacional, global. E nisso experimentei uma viva sensação de
que somos conduzidos por duas forças: a do Espírito e a dos acontecimentos. São
elas que nos tornam capazes de abertura para Deus, para os semelhantes, para o
universo. E nos ajudam a interpretar os sinais deste tempo: pela primeira vez
na História fica claro que há uma única humanidade. O que acontece com um
acontece com todos.
O anúncio diário de numerosas mortes vem
acompanhado de grande dor mas, logo a seguir, de silenciosa resignação, causada
talvez pela consciência do inevitável ou a comunhão com a mesma dor de tantos
outros.
Será que a morte é a maior perda da
vida? Perda maior não será o que morre dentro da gente enquanto estamos vivos?
Por exemplo, a perda da esperança. Tivemos motivo de sobra para perder toda
esperança no interesse do Poder Econômico de salvar vidas humanas. Sua
insensibilidade é inerente ao seu código genético. Pior ainda quando esta
insensibilidade se incorpora no Chefe da nação, com sua necropolítica e seus
discursos alucinógenos.
Por outro lado, o testemunho dos que
arriscaram e perderam a vida cuidando dos enfermos ofereceram-nos uma visão de
Deus na terra. Isso basta para nos devolver a confiança na bondade humana.
Apesar do coronavirus ter sido introduzido
no Brasil por nobres passageiros de vôos internacionais, hoje as estatísticas
apontam os pobres como as suas maiores vítimas, sem comparação. É o eterno jogo
de 500 anos entre Casa Grande e Senzala, que sempre termina em 7 a 1. Basta de mas, porém, contudo, no
entanto. Para não pecar por excesso de prudência, assumo como minha a legenda
de Pedro Casaldáliga: "na dúvida, fico do lado dos pobres".
Voltei a celebrar a Eucaristia, por
enquanto on-line. A participação ativa dos fiéis, mesmo à distância, evidenciou
o inigualável poder de resistência que reside na oração. Tudo o que está acontecendo
cabe dentro de uma Eucaristia. A memória explicitada dos vivos e dos mortos me
faz lembrar palavras de Sto. Agostinho: "quereis cantar os louvores de
Deus? Sede vós mesmos o canto que ides cantar". E também outras palavras
do poeta norte-americano What Whitman: "encontro cartas de Deus espalhadas
pelas ruas, todas assinadas com seu nome, e as deixo onde estão, pois sei, onde
quer que eu vá, outras vão chegar pontualmente e sempre".
Em suma, tudo pode ser tirado de nós,
menos o Amor e a Fé. Ainda quando perdemos o que amamos, o Amor volta em outras
formas e outras pessoas.
Assim quero concluir esta sexagésima e
última REFLEXÃO, com a humilde súplica
dos discípulos de Jesus: "CREIO, SENHOR, MAS AUMENTAI MINHA FÉ".
Amém.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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