Por Marcelo Barros
Em tempos de
fundamentalismos religiosos, a fé parece tornar as pessoas menos humanas. Há
séculos, o Imperialismo ocidental impõe seus interesses e extermina os
dissidentes e diferentes, sempre em nome de Jesus. Atualmente, o Império
norteamericano se considera imbuído de uma vocação divina e cristã para dominar
o mundo. Como reação a esta perversão social e política, também em nome de
Deus, grupos que se dizem muçulmanos protestam contra o imperialismo matando
inocentes. No Brasil, em nome de Cristo, grupos neopentecostais invadem
terreiros e desrespeitam comunidades de tradições espirituais afrodescendentes.
Em nome da fé, diante de tragédias como a gravidez de risco de uma criança de
dez anos, vítima de abuso sexual, religiosos fundamentalistas esbravejam sua
norma moral e sempre dizendo defender a vida. Sempre visando a mulher,
transformada de vítima em pecadora, sem uma atitude concreta que possa mudar a
estrutura machista desta sociedade sem coração.
Diante disso,
para muita gente de boa vontade parece que de um lado está a religião e seus
valores e, do outro lado, está a vida com seus desafios. Como dizia o grande
Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso”.
Na realidade,
nestes dias, a Igreja Católica lê textos do evangelho de Mateus (capítulo 23)
nos quais Jesus ataca não os que não têm fé e sim os religiosos. Na porta do
templo, Jesus denuncia a desumanidade não dos ateus e sim dos professores da
Bíblia e das autoridades do templo. A acusação que ele faz é que “vós filtrais um mosquito e engolis um
camelo”. “Sois como sepulcros caiados, por fora brancos e bonitos, mas por
dentro, podres. Cuidais da imagem pública e social que tendes mas por dentro
estais cheios de hipocrisia”.
Estas
acusações proféticas do mestre nos advertem a todos. Parecem referir-se a
fragilidades pessoais, nas quais todos nós podemos cair. No entanto, não se
trata só de acusações a pessoas que se consideram santas e não são. Jesus
denuncia a própria instituição religiosa que tende a isolar a lei moral da vida
concreta. Na exortação apostólica “A
alegria do amor” , o papa Francisco lembra: “É justo que haja uma lei moral clara, mas sua aplicação tem sempre de
depender das circunstâncias concretas e exige que os pastores dialoguem com os
leigos que têm responsabilidades e critérios éticos” AL 37). A palavra do
papa confirma o que disse Jesus: “A lei
foi feita para as pessoas e não as pessoas para a lei”.
A credibilidade das Igrejas e de toda
religião está cada vez mais ligada ao compromisso destas contribuírem com a
justiça e a paz no mundo. Na América Latina, a estreita relação entre fé e espiritualidade
libertadora foi proclamada oficialmente pela 2ª Conferência dos bispos
católicos latino-americanos, reunida em Medellín, em 1968. Há 52 anos, no
início de setembro, esta conferência era concluída com uma mensagem, até hoje,
atual e necessária: “Que se apresente
cada vez mais nítido, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e
pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida na
libertação do ser humano por inteiro e de toda a humanidade” (Medellin. 5,
15 a)
Nos nossos
dias, mesmo contando com a palavra profética do papa Francisco, grande parte
dos católicos nas dioceses do Brasil quer saber se pode contar com as forças
vivas da Igreja Católica e de sua hierarquia para testemunhar ao mundo um Deus
Amor e mais humano do que esta sociedade secular. Infelizmente, ao contrário do
que falaram os bispos em Medellín, parece que certo grupo de padres e bispos
ainda testemunha um Deus que, para ser fiel, às exigências de sua lei, se torna
menos humano do que este mundo já tão cruel.
Há 52 anos,
(1968), pela primeira vez, uma grande assembléia eclesial se interessava por um
tema que não dizia respeito apenas à organização interna da Igreja. O título da
conferência de Medellín foi “A Igreja no
mundo em transformação”. A perspectiva era projetar uma visão integral do
ser humano, compreendido a partir de sua dimensão social e da sua vocação para
a libertação. De fato, a conferência conseguiu realmente falar ao mundo. Até
hoje, o milagre divino é que, apesar de todas as dificuldades da Igreja e do
mundo, Medellín deixou um espírito que não morreu. Nunca mais o episcopado
católico latino-americano e caribenho conseguiu retomar a liberdade e a
amplidão do espírito de Medellín. No entanto, embora restrito a minorias
proféticas, o apelo dos bispos na conferência ressoa até hoje e incomoda. Jesus
pediu que acreditássemos mais em Deus do que nas instituições religiosas.
Deu-nos o Espírito Santo para nos guiar. E Paulo pediu: Não apaguem o Espírito
dentro de vocês.
As oposições
diretas que o papa Francisco enfrenta na própria cúpula eclesiástica não são
apenas contra o fato de que o papa retoma o espírito e as orientações
fundamentais do Concílio Vaticano II. Ele também retoma o sopro profético de
Medellín para toda a Igreja. Hoje, bispos e padres que se pronunciam por uma
Moral que parece religiosa mas não parte de uma visão da vida em seu conjunto
acaba sendo pouco humana. Temos sim de defender a vida desde o momento da
concepção, mas é preciso aprofundarmos o modo como defender de modos realistas
e em sintonia com o sensus ecclesiae
(a sensibilidade da Igreja) que não parece estar sendo a mesma de hierarcas que
não dialogam e não se colocam na perspectiva da sinodalidade proposta pelo
papa. Desde que assumiu o ministério de bispo de Roma, o papa Francisco procura
mostrar que as normas morais devem ser defendidas, mas sempre a partir da
acolhida e do apoio às pessoas mais vulneráveis e nunca de forma que separe e
violente a vida concreta das pessoas em questão.
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