Marcelo Barros[1]
Na Igreja
Católica, setembro é o mês da Bíblia. Neste mês, o último domingo, ou seja,
este próximo é celebrado como “o dia da Bíblia”. Igrejas evangélicas celebram o
dia da Bíblia em um domingo de dezembro. Seja como for, parece que, atualmente,
o melhor modo de valorizar a Bíblia seria libertá-la de um uso
instrumentalizador e desumano que alguns grupos fazem.
De fato, desde
tempos antigos, a religião, qualquer que ela seja, tem sido usada pelos poderosos
para legitimar o seu poder. Isso tem ocorrido também no uso da Bíblia. Muitas
vezes, a Bíblia foi usada até para matar. Na história, a Igreja usou textos
bíblicos para condenar hereges à fogueira. Em nome da Bíblia, o próprio Jesus
foi condenado à morte, acusado de ter blasfemado contra o templo e por se dizer
filho de Deus.
Em nome de
Jesus e da Bíblia, impérios que se diziam cristãos conquistaram e colonizaram
nosso continente. Até quase nossos dias, missões cristãs atacaram e demonizaram
culturas indígenas e levaram doenças e morte a comunidades originárias. Nestes
dias, quase cotidianamente, em nome de Jesus e motivados pela Bíblia, grupos
pentecostais atacam e destroem templos afro-brasileiros. No Congresso Nacional,
há uma bancada que se diz da Bíblia para legitimar as bancadas do boi e da
bala. Muitos dos congressistas se orgulham de pertencerem às três, como se
fossem uma só.
Há quem culpe a
Bíblia pelo fato de que, nas eleições de 2018, a maioria das pessoas que se
dizem cristãs votou pelo candidato do ódio e da violência, enquanto a maioria
dos que se dizem ateus votou pela democracia.
O apóstolo Paulo escreveu: “A letra mata. É o Espírito que faz viver”
(2 Co 3, 6). Grupos e Igrejas fundamentalistas não conseguiram apagar ou jogar
no lixo esta palavra. A própria Bíblia deixa claro que ela não quer ser lida ao
pé da letra. Nos evangelhos, a todo momento, Jesus diz: “na Bíblia, se lê assim, mas eu tenho outra interpretação para isso”
(Mt 5, 21 ss). Se nós somos discípulos e discípulas de Jesus, devemos
desenvolver na leitura da Bíblia a mesma liberdade espiritual que Jesus viveu e
nos propôs.
De acordo com a
nossa fé, Deus se revela à humanidade através de dois livros: o primeiro é o
livro da vida. A própria terra e a natureza são palavras que nos comunicam
permanentemente o amor divino. As comunidades católicas costumam dizer em cada
celebração da ceia de Jesus: “O céu e a terra estão cheios da vossa presença”.
E este Deus que nos manifesta o seu amor na criação, nos dá sua Palavra através
dos acontecimentos da vida. Mas, para decifrar esta mensagem, precisamos do
segundo livro sagrado que Deus revelou: a Bíblia para os judeus e cristãos e
outras revelações para outros grupos espirituais e outras religiões.
Na compreensão
judaico-cristã, a Bíblia não é diretamente a Palavra de Deus. Ela é a escritura
da Palavra de Deus. Em um de seus primeiros escritos, Carlos Mesters a
comparava com uma partitura musical. Para quem toca um instrumento ou canta, a
partitura é muito útil. No entanto, a mesma partitura possibilita que a canção ali
escrita possa ser interpretada por alguém como lamento e por outro como
protesto. Uma mesma canção de amor pode ter versão mais dolente, ou
interpretação mais alegre. No Novo Testamento, as primeiras gerações de cristãos
e cristãs leram a Bíblia de formas diversas, que não se opõem, mas ao
contrário, se complementam.
Este mês da
Bíblia pode ser oportuno para nos ajudar a descobrir uma palavra de Deus nos
textos antigos para assim discernir, o que o Espírito de Deus diz, hoje, às
Igrejas e ao mundo. A Bíblia, lida de forma não fundamentalista, pode ajudar-nos
a compreender o que Deus nos diz através dos acontecimentos de cada dia.
Há quem pense
na Bíblia como luz que esclarece tudo. No entanto, não é esta a experiência dos
primeiros cristãos. Na 2ª carta atribuída a Pedro, o autor descreve os textos
bíblicos, não como farol ou luzeiro e sim como lampadazinha “que fazeis bem em prestar atenção. Ela (a
palavra da Escritura) brilha em lugar
escuro até que o dia clareie a estrela da manhã, o sol, brilhe em vossos
corações” (2 Pd 1, 19).
[1] -
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o
mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed.
Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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