uma
reflexão sobre o tema do Mês da Bíblia 2020 [1]
por Kinno Alves
Cerqueira [2]
Nunca
deixará de haver pobre na terra;
é
por isso que eu te ordeno:
abre
a mão em favor do teu irmão,
do
teu humilde e do teu pobre
em
tua terra (Dt 15,11) [3]
1 Para começar
Desde
1971, a Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil consagrou o mês de setembro
para o estudo da Bíblia. A cada ano, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, a CNBB, elege um livro a ser lido e um lema-chave que sirva como ponto
de partida para a leitura a ser empreendida. Neste ano de 2020, quando já
entrevemos o jubileu de ouro do Mês da Bíblia, o livro a ser lido é o
Deuteronômio e o lema-chave escolhido, “Abre tua mão para teu irmão” (Dt
15,11).
O
Mês da Bíblia não é um espaço para simplesmente venerarmos um conjunto de
livros antigos que não raras vezes nos causa estranheza. Na verdade, o Mês da
Bíblia é o nosso mês, pois nas páginas da Bíblia redescobrimos nossa própria
história com suas belezas e limitações, mas sobretudo como horizonte de
possibilidades, de sonhos, de conversão da vida...
2
Habitar os jardins
Não
raras vezes, aproximamo-nos da Bíblia como um taxonomista a identificar
espécimes de flores que lhe são trazidas de jardins nos quais ele nunca esteve.
Não haveria um caminho mais belo a ser feito? Há que se caminhar,
despretensiosa e amorosamente, ao interior dos jardins bíblicos, ali onde, a um
só tempo, os perfumes embriagam-nos e os espinhos despertam-nos a consciência.
Na
alameda florida, nossos olhos se fecham e nossas mãos não se podem esquivar do
toque sensitivo que engendra o despertar da pele, a redescoberta do corpo como
lugar de acolher, desdizer e redizer o que descobrimos de nós na Palavra e da
Palavra em nós [4].
3
Viagens sem mapas
O
ato de acolher, desdizer e redizer faz nascer a coragem de permitirmo-nos
viajar por dentro de nós mesmos sem bússolas nem mapas. De caminhos traçados
por outrem, descobrimo-nos a nós mesmos como caminho inaudito, realidade pouco
sabida e sempre pressentida a interrogar-nos sobre o que somos.
4
Somos mãos
A
frase “Abre tua mão” (Dt 15,11) é um tanto escorregadia, pois facilmente
ouvimo-la como sendo uma referência à mão em seu sentido estritamente laborioso
ou, quando muito, como alusão à dimensão operativo-pragmática de nosso existir.
Na Bíblia, porém, o vocábulo “mão” (hebr. יָד)
forma uma constelação de sentidos: “mãos, antebraço, pênis; lado, próximo,
margem, lugar, força; monumento, eixos de roda, suportes, encaixes, parte” [5].
Daí
por que não seja estranho que leiamos na Bíblia que é a “mão” de YHWH que cria
a liberdade dos hebreus escravizados (Dt 5,15; 6,21; 7,8; 9,26), a beleza do
luar grinaldado de estrelas (Sl 19,1-2), a ousadia profética (Is 26,11), a
palavra desnudante das tramas dos homens (2 Rs 3,15). As mãos humanas ameaçam o
status dos deuses (Gn 3,22) e divinizam selfs (Dt 4,28), derramam
sangue inocente (Gn 14,11) e arrepiam os corpos dos amantes (Ct 2,6; 5,4), amesquinham
a vida (Gn 37,22) e dão-lhe o sabor de leite e mel (Dt 6,3).
Como
vemos, a semântica bíblica dilata, potencia e complexifica o sentido da palavra
“mão” a ponto de salvar-nos da estreiteza de sentido que nos impede de
vislumbrar a potente complexidade que somos nós: somos mãos, nossas mãos somos
nós com tudo o que sentimos, desejamos e miramos.
5
A aventura de abrir-se
“Abre
tua mão” (Dt 15,11) aparece-nos, pois, como uma voz a chamar-nos para aceder à bela
aventura de abrir-se desde dentro para acolher os apelos que nos vem das vidas
que estão diante de nós. Trata-se de suspender as respostas para dar lugar ao
inusitado da vida, de perder as palavras para reencontrá-las renascidas noutros
corpos, refazer a vida diante de outras vidas, enfim, de acolher o outro a
partir do outro, para que no outro descubramos mais de nós e em nós, mais do
outro.
6
A radicalidade da descoberta
A
aventura na qual nos lançamos culmina na radical descoberta de que somos
irmãos: (...) “abre tua mão em favor do teu irmão” (Dt 15,11). A
corresponsabilidade que emerge dessa descoberta comporta tanta força que “os
outros” tornam-se “meus outros” e os humildes, os pobres e a terra, “meus
humildes”, “meus pobres” e “minha terra”. Descortina-se diante de nós a possibilidade
de tornarmo-nos pessoas, ou seja, seres humanos em inter-relação cosmocizante [6].
7
Abonitar a vida
O
assombro de tal descoberta e nossa subsequente adesão ao chamado para
tornarmo-nos pessoas inscrevem-nos no interior de um sonho repetidamente
consignado na encantada imagem de “uma terra que mana leite e mel” (Ex 3,8; Dt
6,3). Tal imagem não descreve a qualidade solo-climática de uma terra,
mas sublinha a fartura, símbolo da paz, como possibilidade sempre presente para
um povo formado por pessoas que exercem a corresponsabilidade traduzida na
partilha. Trata-se, pois, de um sonho a um só tempo poético e político de
“abonitamento da vida”.
7
Esperança nos passos, sonhos nas mãos
A
esperança de um sonho não reside na quietude desinteressada nem em análises
sofisticadas da realidade. A poetisa Cora Coralina escreveu [7]:
Desistir?
Eu já pensei
seriamente nisso,
mas nunca me levei
realmente a sério.
É que tem mais
chão nos meus olhos
do que o cansaço
nas minhas pernas,
mais esperança nos
meus passos,
do que tristeza
nos meus ombros,
mais estrada no
meu coração
do que medo na
minha cabeça.
Entre
a realidade e o sonho estamos nós, gente que, de mãos dadas, leva a esperança
nos passos, a boniteza nos olhos, os sonhos nas mãos...
Notas:
[1] Contribuição
apresentada por ocasião da live Como organizar o Mês da Bíblia nas
comunidades, promovida pelo Grupo de Pesquisa Cristianismo e
Interpretações da Pós-graduação em Teologia (PPGTEO) da Universidade
Católica de Pernambuco (UNICAP), em 29 de AGO de 2020.
[2] Mestrando em Teologia do
Programa de Pós-graduação em Teologia (PPGTEO) da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP). Bolsista da CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa Cristianismo
e Interpretações do PPGTEO da UNICAP.
Assessor do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) em Pernambuco. E-mail: kinno_cerkeira@hotmail.com
[3] BÍBLIA. A Bíblia de
Jerusalém. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulinas, 2002.
[4] Poder-se-ia dizer:
acolher, desfigurar e transfigurar.
[5]
KIRST, N. et al. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português.
São Leopoldo: Editora Sinodal, 2014, p. 85.
[6] O termo
“cosmocizante” designa a qualidade do que cosmociza, isto é, que transforma uma
determinada realidade (caótica) em cosmos.
[7] Poema disponível em:
<https://sonho_realidade.blogs.sapo.pt/tag/cora+coralina>
Acesso em 28 AGO 2020.
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