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quarta-feira, 16 de setembro de 2020

“ABRE TUA MÃO PARA TEU IRMÃO” (Dt 15,11):

 



uma reflexão sobre o tema do Mês da Bíblia 2020 [1]

 

por Kinno Alves Cerqueira [2]

 

Nunca deixará de haver pobre na terra;

é por isso que eu te ordeno:

abre a mão em favor do teu irmão,

do teu humilde e do teu pobre

em tua terra (Dt 15,11) [3]

 

 

1 Para começar

Desde 1971, a Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil consagrou o mês de setembro para o estudo da Bíblia. A cada ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, elege um livro a ser lido e um lema-chave que sirva como ponto de partida para a leitura a ser empreendida. Neste ano de 2020, quando já entrevemos o jubileu de ouro do Mês da Bíblia, o livro a ser lido é o Deuteronômio e o lema-chave escolhido, “Abre tua mão para teu irmão” (Dt 15,11).  

O Mês da Bíblia não é um espaço para simplesmente venerarmos um conjunto de livros antigos que não raras vezes nos causa estranheza. Na verdade, o Mês da Bíblia é o nosso mês, pois nas páginas da Bíblia redescobrimos nossa própria história com suas belezas e limitações, mas sobretudo como horizonte de possibilidades, de sonhos, de conversão da vida...

 

2 Habitar os jardins

Não raras vezes, aproximamo-nos da Bíblia como um taxonomista a identificar espécimes de flores que lhe são trazidas de jardins nos quais ele nunca esteve. Não haveria um caminho mais belo a ser feito? Há que se caminhar, despretensiosa e amorosamente, ao interior dos jardins bíblicos, ali onde, a um só tempo, os perfumes embriagam-nos e os espinhos despertam-nos a consciência.

Na alameda florida, nossos olhos se fecham e nossas mãos não se podem esquivar do toque sensitivo que engendra o despertar da pele, a redescoberta do corpo como lugar de acolher, desdizer e redizer o que descobrimos de nós na Palavra e da Palavra em nós [4].

 

3 Viagens sem mapas

O ato de acolher, desdizer e redizer faz nascer a coragem de permitirmo-nos viajar por dentro de nós mesmos sem bússolas nem mapas. De caminhos traçados por outrem, descobrimo-nos a nós mesmos como caminho inaudito, realidade pouco sabida e sempre pressentida a interrogar-nos sobre o que somos.           

 

4 Somos mãos

A frase “Abre tua mão” (Dt 15,11) é um tanto escorregadia, pois facilmente ouvimo-la como sendo uma referência à mão em seu sentido estritamente laborioso ou, quando muito, como alusão à dimensão operativo-pragmática de nosso existir. Na Bíblia, porém, o vocábulo “mão” (hebr. יָד) forma uma constelação de sentidos: “mãos, antebraço, pênis; lado, próximo, margem, lugar, força; monumento, eixos de roda, suportes, encaixes, parte” [5].

Daí por que não seja estranho que leiamos na Bíblia que é a “mão” de YHWH que cria a liberdade dos hebreus escravizados (Dt 5,15; 6,21; 7,8; 9,26), a beleza do luar grinaldado de estrelas (Sl 19,1-2), a ousadia profética (Is 26,11), a palavra desnudante das tramas dos homens (2 Rs 3,15). As mãos humanas ameaçam o status dos deuses (Gn 3,22) e divinizam selfs (Dt 4,28), derramam sangue inocente (Gn 14,11) e arrepiam os corpos dos amantes (Ct 2,6; 5,4), amesquinham a vida (Gn 37,22) e dão-lhe o sabor de leite e mel (Dt 6,3).    

Como vemos, a semântica bíblica dilata, potencia e complexifica o sentido da palavra “mão” a ponto de salvar-nos da estreiteza de sentido que nos impede de vislumbrar a potente complexidade que somos nós: somos mãos, nossas mãos somos nós com tudo o que sentimos, desejamos e miramos.

 

5 A aventura de abrir-se   

“Abre tua mão” (Dt 15,11) aparece-nos, pois, como uma voz a chamar-nos para aceder à bela aventura de abrir-se desde dentro para acolher os apelos que nos vem das vidas que estão diante de nós. Trata-se de suspender as respostas para dar lugar ao inusitado da vida, de perder as palavras para reencontrá-las renascidas noutros corpos, refazer a vida diante de outras vidas, enfim, de acolher o outro a partir do outro, para que no outro descubramos mais de nós e em nós, mais do outro.

 

6 A radicalidade da descoberta

A aventura na qual nos lançamos culmina na radical descoberta de que somos irmãos: (...) “abre tua mão em favor do teu irmão” (Dt 15,11). A corresponsabilidade que emerge dessa descoberta comporta tanta força que “os outros” tornam-se “meus outros” e os humildes, os pobres e a terra, “meus humildes”, “meus pobres” e “minha terra”. Descortina-se diante de nós a possibilidade de tornarmo-nos pessoas, ou seja, seres humanos em inter-relação cosmocizante [6].    

 

7 Abonitar a vida

O assombro de tal descoberta e nossa subsequente adesão ao chamado para tornarmo-nos pessoas inscrevem-nos no interior de um sonho repetidamente consignado na encantada imagem de “uma terra que mana leite e mel” (Ex 3,8; Dt 6,3). Tal imagem não descreve a qualidade solo-climática de uma terra, mas sublinha a fartura, símbolo da paz, como possibilidade sempre presente para um povo formado por pessoas que exercem a corresponsabilidade traduzida na partilha. Trata-se, pois, de um sonho a um só tempo poético e político de “abonitamento da vida”.

 

7 Esperança nos passos, sonhos nas mãos

A esperança de um sonho não reside na quietude desinteressada nem em análises sofisticadas da realidade. A poetisa Cora Coralina escreveu [7]:

Desistir?

Eu já pensei seriamente nisso,

mas nunca me levei realmente a sério.

É que tem mais chão nos meus olhos

do que o cansaço nas minhas pernas,

mais esperança nos meus passos,

do que tristeza nos meus ombros,

mais estrada no meu coração

do que medo na minha cabeça.

 

Entre a realidade e o sonho estamos nós, gente que, de mãos dadas, leva a esperança nos passos, a boniteza nos olhos, os sonhos nas mãos...

 

 

Notas:

[1] Contribuição apresentada por ocasião da live Como organizar o Mês da Bíblia nas comunidades, promovida pelo Grupo de Pesquisa Cristianismo e Interpretações da Pós-graduação em Teologia (PPGTEO) da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), em 29 de AGO de 2020. 

[2] Mestrando em Teologia do Programa de Pós-graduação em Teologia (PPGTEO) da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Bolsista da CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa Cristianismo e Interpretações do PPGTEO da UNICAP.  Assessor do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) em Pernambuco. E-mail: kinno_cerkeira@hotmail.com

 

[3] BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulinas, 2002.

 

[4] Poder-se-ia dizer: acolher, desfigurar e transfigurar.

[5] KIRST, N. et al. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2014, p. 85.   

[6] O termo “cosmocizante” designa a qualidade do que cosmociza, isto é, que transforma uma determinada realidade (caótica) em cosmos. 

[7] Poema disponível em: <https://sonho_realidade.blogs.sapo.pt/tag/cora+coralina> Acesso em 28 AGO 2020.

 

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