FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(09/06/2021)
Para minha surpresa, de todas estas nossas
REFLEXÕES, desde o início da pandemia, a que recebeu o título de "Sanidade
e Loucura", foi a que teve o maior número de reações e comentários. E os
comentários mais longos focaram quase exclusivamente o segundo o elemento, a
loucura. Logo vieram à minha cabeça algumas inusitadas hipóteses. Parece haver
em todos nós uma certa curiosidade silenciosa e indagativa sobre este assunto.
Algo assim: será que a loucura esconde algum mistério da nossa humana natureza,
que os loucos liberam? Serão eles
detentores de algum saber oculto que a nossa aparente saúde mental
reprime, por motivos convencionais? As convenções nos coagem a sermos
"normais" e com isso ficamos humanamente empobrecidos?
Creio que todo mundo já conheceu algum
"louco" que fazia ou ainda faz a festa da vizinhança. Conheci um
destes, morando em frente ao convento. Ele dizia palavrões de enrubescer até os
ouvidos mais liberais, porém os dizia com tamanha naturalidade e liberdade, que
os jovens o atiçavam, a toda hora, só pelo gosto de divertir-se com suas
investidas que, em situções normais, provocariam brigas e, quiçá, mortes.
Confesso que sou um "tabula
rasa" na interpretação destes fenômenos. Não me arrisco a nehuma análise
profunda e cientificamente confiável. Apenas me julgo no direito de expressar
minha perplexidade. Talvez esteja aí uma explicação do uso super polarizado da palavra loucura.
Chama-se com o mesmo substantivo o louco perigoso e o louco simpático; a
loucura patológica capaz de destruir vidas e a loucura sublimada que dá a vida
por amor. Talvez seja por isso que ouvimos tantas vozes comparando este nosso mundo com um grande
manicômio.
Voltei a este assunto porque muitos de nós
sentem-se afrontados com o surto de psicopatia que se apossou das cúpulas
políticas que governam o país e desafia
nosso mais elementar entendimento da realidade. Como avaliar esta expressiva
soma de compatriotas prontos a mitificar o "louco-mor" e apoiar suas
políticas?
O que daí resulta afeta o equlíbrio
emocional de toda a população. Mistura-se à loucura uma tragédia maior, tanto maior quanto mais somos diariamente
informados de que milhares de vítimas fatais do coronavirus teriam sido
poupadas, não fosse o crime de omissão proposital.
O famoso escritor português, José
Saramago, prêmio Nobel de Literatura, escreveu uma obra-prima chamada
"Ensaio Sobre a Cegueira". A cegueira é irmã da loucura. Saramago
narra o seguinte:
Um motorista qualquer, parado em um
semáforo, subitamente descobre que está cego. A luz verde acende e ele continua
parado. Enquanto as buzinas enfurecidas apitam e todos se agitam e batem no
vidro do carro, só se vê o movimento de seus lábios dizendo: estou cego! Estou
cego! A partir daí, a cegueira vai-se espalhando entre os habitantes da cidade.
Todos vão perdendo a visão dos olhos. E o que acontece?
Sem poder ver as coisas exteriores, eles
vão sendo reduzidos à sua essência humana. Vão descobrindo as coisas que não
viam antes e percebem que estas coisas escondiam as suas necessidades básicas.
O autor cega os seus personagens para que eles possam ver melhor; possam
recuperar a lucidez, resgatar os verdadeiros afetos, diante da pressão dos
tempos atuais, que nos obriga a concentrar a visão nas coisas brilhantes e
visíveis aos olhos, a fim de ver somente o que o Sistema determina que seja
conhecido. Os habitantes da cidade são internados em um manicômio (sempre de
novo a imagem da loucura), a fim de reaprender a viver e conviver.
O autor conclui com este pensamento: "uma coisa que não tem nome, esta coisa
é o que somos".
Não é assim que pensamos à luz da Fé. O
que somos tem nome, sim: somos criaturas livres, criadas à imagem do Criador.
Contudo não há como negar que esta parábola de Saramago tem afinidade com
algumas passagens do Evangelho em que Jesus se depara com o mesmo problema da
cegueira.
Precisamos voltar ao assunto. Enquanto
isso, recordemos um certo momento do Evangelho: "Então Jesus perguntou ao
cego Bartimeu: - Que queres que eu faça? E este respondeu: "Senhor, que eu
veja!" Lc. 18,35-43.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador
da Tenda da Fé e escritor
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