Leonardo Boff
Em
momentos de grandes crises, de desastres naturais e agora com a epidemia do
Coronavírus, os seres humanos deixam vir à tona aquilo que está na sua essência
como humanos: a solidariedade, a cooperação, o cuidado de uns para com os
outros e para o seu entorno e a espiritualidade.
Ouvimos
da boca de Michail Gorbachev no encontros para a elaboração da Carta da
Terra,exatamente dele considerado ateu por ser comunista e chefe de
Estado: ou vamos desenvolver uma espiritualidade com novos
valores,centrados na vida e na cooperação ou não haverá solução para a vida na
Terra.
Esta
pandemia significa uma conclamação para esta espiritualidade salvadora.Como diz
a Carta da Terra:”Como nunca antes na história, o destino
comum nos conclama a um novo começo…Isso requer uma mudança na mente e no
coração; requer um novo sentindo de interdependência global e de
responsabilidade universal…só assim se chega a um modo sustentável de
vida”(Conclusão)
Vivemos uma emergência ecológica planetária. Acertadamente nos alertou a Laudato Sì do Papa Francisco:”As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e
ironia. O ritmo do consumo, desperdício e alteração do ambiente superou de tal
maneira as possibilidades do planeta, que o estilo insustentável de vida atual
só pode desembocar em catástrofes”(n.161).
Esta advertências reforçam a urgência de uma espiritualidade da Terra. Ela
demanda um novo paradigma, apresentado pelo Papa Francisco em sua última
encíclica Fratelli tutti (2020): devemos
deixar de nos imaginar os donos (dominus) da
natureza para sermos de fato irmãos e irmãs (frater, soror). Se
não fizermos essa travessia vale esta advertência:”Ou nos salvamos todos ou
ninguém se salva”(n. 32).
Em função
dessa missão comum se estabeleceu uma colaboração e uma articulação entre duas
famílias religiosas com suas tradições espirituais, amigáveis para com a
criação, à vida, aos mais destituídos: os franciscanos com o Serviço
Inter-franciscano de Justiça, Paz e Ecologia da Conferência da Família
Franciscana do Brasil e os jesuítas com o Observatório Luciano Mendes de
Almeida, a Rede de Justiça socio-ambiental dos Jesuítas e o Movimento Católico
Global pelo Clima, somando-se ainda como parceiros a MAGIS, A FAJE.
As
espiritualidades e os valores de cada uma destas duas tradições nos
poderão inspirar novas formas de cuidar da herança sagrada que a evolução e
Deus nos entregaram, a Terra, a Magna Mater dos antigos, a Pachamama dos
andinos e a Gaia dos modernos.
Em sua
encíclica de ecologia integral Laudato Si o
Papa Francisco apresenta São Francisco “como o exemplo por execelência pelo
cuidado pelo que é frágil, vivido com alegria e autenticidade. É o padroeiro de
todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos
que não são cristãos”(n.10). Diz mais ainda:”Coração universal, para ele
qualquer criatura era uma irmã, unida a ele por laços de carinho; por isso
sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe…até das ervas silvestres que
deviam ter o seu lugar no horto” de cada convento dos frades(n.11.12).
Para
Santo Inácio de Loyola, grande devoto de São Francisco, e para este ser pobre
significava mais que um exercício acético, mas um despojamento de tudo
para estar mais próximo dos outros e construir com eles fraternidade. Ser pobre
para ser mais irmão e irmã.
Para os primeiros
companheiros de Santo Inácio a vida em pobreza, individual e comunitária,
sempre acompanhou o cuidado com os pobres, parte essencial do carisma
jesuítico. E São Francisco vivia estas três paixões: ao Cristo crucificado, aos
pobres mais pobres e à natureza. Chamava a todas as criaturas, até ao feroz
lobo de Gubbio com o doce nome de irmãos e de irmãs.
Ambos
vislumbravam Deus em todas as coisas. Como o expressou belamente Santo
Inácio:“Encontrar Deus em todas as coisas e ver que todas as coisas vem do
alto”. E dizia mais, bem na linha do espírito de São Francisco:” Não é o muito
saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear internamente as
coisas”. Só pode saborear internamente todas as coisas se as ama
verdadeiramente e e sente unido a elas. Em São Francisco abundam afirmações
semelhantes.
Tais
modos de vida e de relacionamento são fundamentais se quisermos reinventar uma
forma amigável, reverente e cuidadosa para com a Terra e a natureza. Dai
nascerá uma civilização biocentrada. Como afirma a Fratelli tutti, fundada numa “política da ternura
e da gentileza”, “no amor universal e na fraternidade sem fronteiras”, na
interdependência entre todos, na solidariedade, na cooperação e no cuidado para
com tudo o que existe e vive, especialmente com os mais desprotegidos.
O
Covid-19 é um sinal que a Mãe Terra nos envia para assumirmos nossa missão que
o Criador e o universo nos confiaram: de “proteger e cuidar do Jardim do Éden”,
isto é, da Mãe Terra (Gn 2,15). Se juntos, estas duas Ordens, dos franciscanos
e dos jesuítas, associados a outros, se propuserem realizar este sagrado
propósito, darão um sinal de que nem tudo do Paraíso terrenal se perdeu. Ele
começa a crescer dentro de nós e se expande
para fora de nós, fazendo, de verdade, da Mãe Terra, a
verdadeira e única Casa Comum na qual podemos viver juntos na fraternidade, na
amorosidade, na justiça, na paz e na alegre celebração da vida. São
sonhos? Sim, são os Grandes Sonhos, necessários, que antecipam a realidade
futura.
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Leonardo
Boff, ecoteólogo, da parte da família franciscana.
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