FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(21/06/2021)
Em atenção ao vivo interesse que estas
Reflexões despertaram pela obra e o autor de "Ensaio Sobre a
Cegueira", atrevo-me a fazer uma breve consideração. Este não é um livro
de leitura fácil e prazeirosa, bem ao contrário. Ele mesmo, Saramago, adverte,
em uma de suas entrevistas: "este é um livro com o qual eu quero que o
leitor sofra tanto quanto eu sofri ao escrevê-lo.(....) Nele se descreve uma
longa tortura. Através da escrita tentei dizer que não somos bons e que é
preciso coragem para reconhecer isto".
Como leitor ávido de suas idéias,
reconheço, no entanto, que não contaria com o seu acordo em algumas
interpretações. No mínimo ele me diria que extrapolei suas intenções e, em
alguns casos, misturei alhos com bugalhos. Nossos pontos de partida se
conflitam, eu com minha visão cristã de todas as coisas e ele, ateu e
anti-religioso. (Vejam uma prova disso: após escaparem do manicômio, os
ex-cegos entram numa igreja e encontram as imagens todas de olhos vendados; não
está aí uma sutil acusação de descaso divino e omissão da Igreja?)
Malgrado seu ateismo, vejo uma profunda
convergência entre palavras postas na boca de um de seus personagens:
"porque cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão.
Queres que diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos
cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem",
e outras tantas palavras
ditas por Jesus no Evangelho de João, 9,39: "vim ao mundo para que os que
não veem vejam e os que veem, tornem-se cegos".
A imagem que ele usa da "cegueira
branca", na qual os cegos enxergam "um mar de leite" me parece
uma transfiguração de outra passagem bíblica. Durante séculos os hebreus
viveram como escravos do Faraó do Egito, na cegueira da resignação, até aparecer Moisés, abrindo-lhes os olhos com a visão da
"Terra Prometida", a terra "onde corre leite e mel".
Fica-me a sensação de que, em ambos os casos, os cegos não perderam de todo a
miragem da utopia, esse mar de leite e
mel.
Se ele me desse a chance de fazer-lhe perguntas,
perguntaria sobre os motivos que o levaram a escolher a figura da mulher
como protagonista, único personagem
lúcido, preparado para cumprir uma função libertadora. E lhe perguntaria ainda
por que o primeiro a cegar perde a visão no momento em que se encontra em meio
ao trânsito, diante do semáforo? Será uma metáfora da eterna rotina da grande
cidade? O cidadão-robô a transitar sempre pelos mesmos caminhos, para chegar
aos mesmos lugares? De quebra e por mera
curiosidade, indagaria: por que ao chefe dos "cegos malvados" foi
dado o apelido de "homem da pistola"? Foi alguma premonição?
Finalmente chegamos ao fim desta novela. É
claro que uma obra desta envergadura, que nos convoca a desvendar elementos
transcendentais da nossa condição humana, não poderia ter um final feliz, nem
um final-ponto-final. Todos ficamos um tanto decepcionados quando o autor de
uma novela transpõe para nós a responsabilidade de encontrar seu final,
construindo-o. Assim o faz Saramago.
No exato momento em que a "mulher do
médico", frente à degradação humana, sente-se impotente para combater os
"cegos malvados", entra em cena "a mulher do isqueiro".
Esta arrisca sua vida ateando fogo na barricada dos mesmos "cegos
malvados". Com isso facilita a fuga dos outros cegos. Estes voltam para a
grande cidade e vão recuperando a visão aos poucos, ao tempo em que descobrem
que a população inteira do país também cegou. Eles passam a procurar suas
próprias formas de sobreviver. "A mulher do médico reassume a liderança e
aponta o caminho: "Se nos separarmos, seremos destroçados. Continuemos a
viver juntos. Organizar-se já é começar a ter olhos".
Ao longe vislumbro a figura de Jesus
aproximando-se para dizer-lhes: "se tiverdes fé fareis as coisas que fiz e
farão outras ainda maiores" Jo. 14,12.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano,
coordenador da Tenda da Fé e escritor
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