Marcelo Barros
Nesta semana, a partir de 21 de junho, dia do solstício do
inverno no hemisfério sul, vários povos originários celebram festas que
correspondem ao que tradicionalmente, no hemisfério norte, se costumou
denominar o ano novo. Em muitos recantos da cordilheira, povos andinos celebram
o Inti- Raimi, festa do renascimento do Sol, rei da vida. Esses festejos nos recordam
a antiga festa romana de 25 de dezembro que deu origem à atual celebração
cristã do Natal.
No sul do Brasil, os Guarani Mbyá denominam essa época de junho
como Ara Pyaú (Tempo Novo). Os fortes ventos (yvytu) anunciam o tempo novo,
marcado pela cerimônia da erva-mate, o ka’a nheemongaraí, cujas projeções sobre
o ano-novo são interpretadas pelo pajé. Em outras regiões do Brasil, é a festa
do milho.
Essas celebrações indígenas, seja nos Andes, seja no Brasil,
tiveram de se vestir de festas cristãs em honra de São João para serem aceitas.
Desde as últimas décadas, a sociedade dominante investe nessas festas populares
para explorar o turismo. Seja como for, os povos originários sempre têm sabido
usar sua capacidade de organização para, nas brincadeiras e festas juninas,
ensaiar novo estilo de sociedade.
Nestes dias, os mesmos quétchuas que desfilam de roupas
longas e coloridas na Plaza Mayor de Cuzco
acabam de eleger Pedro Castillo, simples professor da roça, como
presidente da República do Peru. Apesar da pandemia, em um imenso cortejo
formado por pessoas de diversas etnias, os índios descem as montanhas e vão a pé até Lima para
manifestar aos peruanos da cidade grande que eles também são cidadãos.
Representam a parte maior do país e querem ver respeitado o seu voto.
Na Colômbia e no Chile, comunidades tradicionais se
manifestam exigindo mudanças e pedindo justiça. No Brasil, há poucos dias, associações
indígenas criaram o Parlaíndio, um Parlamento dos Povos Indígenas. Esse
organismo representará as vozes e interesses de quase um milhão de pessoas no
Brasil. São povos que resistem e precisam de ver reconhecidos seus direitos
coletivos. Querem viver suas culturas originárias, em seus territórios sagrados
e junto com os Espíritos e Encantados, cuidar da natureza.
É urgente essa mobilização dos povos originários e a ela
devemos nos juntar, todas as pessoas que amam a justiça e a paz. Como já há três
anos, em Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, afirmou o papa Francisco: “Os
povos originários nunca foram tão ameaçados como estão sendo agora, em sua
existência física e em suas culturas”.
As notícias revelam que na Amazônia e no Pantanal do Mato Grosso
do Sul, a destruição da natureza tem se dado de modo gigantesco. Em todo o
Brasil, companhias mineradoras como a Vale têm assassinado a vida de rios
inteiros, transformados em leitos de contaminação e morte. As primeiras vítimas
desse ecocídio são os povos originários.
De maio a junho somente no Oeste do Paraná, ocorreram quatro
suicídios de adolescentes e jovens Avá Guarani, todos menores de 23 anos e todos ligados a falta de
perspectivas de vida em sua cultura.
Neste ano, a pandemia ainda não permitirá que no Brasil e
nos Andes as festas de um novo tempo possam ser vividas do modo como
desejaríamos. No entanto, elas podem ser ensaiadas na educação da juventude e
na prioridade que devemos dar a superar a propaganda anti-ética dos
dominadores. É preciso que as manifestações populares ganhem sempre mais força
nova.
Assim, mesmo no cuidado sanitário do distanciamento físico e
do uso de máscaras, grupos e comunidades populares sinalizam uma realidade nova
que se aproxima ao que os evangelhos chamam de reinado de Deus. Do seu modo e
em sua linguagem lúdica, traduzem para toda a humanidade uma palavra que os
evangelhos atribuem a São João Batista: “Mudem
de vida porque a realização do projeto de Deus no mundo está próximo!” (Mt
3, 2).
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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