Maria Clara Lucchetti Bingemer
O
coração na história da humanidade não é concebido apenas como o músculo que
bombeia o sangue através do corpo em movimentos sistólicos e diastólicos
incessantes. Não é apenas a sede das emoções e sentimentos tão utilizados
pela literatura romântica para expressar aquilo que faz o coração dos
apaixonados bater em diversos e variados ritmos e tons.
A
simbologia do coração nas diversas religiões é muito rica. Demonstra que aquilo
que é nosso centro vital, situado em plena corporeidade nossa e quando sofre
qualquer fragilização põe em risco nossa vida, pode carregar um significado de
profunda riqueza espiritual, que vai além do biológico ou mesmo das diversas
paixões.
Na mitologia
greco-romana, base da cultura ocidental, o coração é símbolo do nascimento, do
princípio da vida. Isso se deve a Zeus, o deus mais poderoso do Olimpo, que
engole o coração ainda palpitante de Zagreu, gerando daí seu filho Dionísio.
Também no Antigo Egito, o Salão do Juízo correspondia ao local onde eram
pesados os corações dos mortos. E o órgão que bombeia a vida para toda pessoa
era visto e considerado como sede da sabedoria e da inteligência, sendo
associado à verdade e à justiça.
Também nas
religiões orientais a simbologia do coração se faz presente. Na Índia, se
concebe que por assegurar a circulação do sangue e ser o centro vital do ser
humano, o coração é o símbolo da morada de Brama, a divindade suprema do
hinduísmo.
No Islã, o
coração é considerado o trono de Deus, a sede e morada da divindade. E quando
aparece um coração alado, aí se reconhece o símbolo do movimento islâmico
Sufi, que acredita que o coração se situa no movimento e no espaço entre o
espírito e a matéria, entre o corpo e a alma. Simboliza o amor de Deus, o
centro espiritual e emocional dos seres.
No Cristianismo, o
coração é entendido como centro ou núcleo do ser e dele se originam a oração,
ou seja, o impulso da fé que leva ao diálogo amoroso com Deus e também as ações
e condutas morais. O coração é a morada de Deus, onde habita seu Espírito que é
o Único que pode sondá-lo e conhecê-lo. É o lugar da decisão, no mais profundo
das tendências humanas psíquicas. É a sede da verdade, onde o ser humano
é chamado a escolher a vida ou a morte.
Como sede da
personalidade moral, o coração é o lugar de onde surgem os bons e os maus
impulsos, que deverão ser discernidos para tomar as decisões adequadas a uma
vida plena e feliz. Porém, o ser humano, criado por Deus, não é constituído
apenas de coração. Também a razão pela qual reflete, pondera, avalia, é
elemento fundamental e constitutivo de seu ser e de sua identidade.
O grande pensador
francês Blaise Pascal refletiu muito sobre o coração. Ainda que dotado de
uma inteligência brilhante, atraída pelo pensar e pela atividade intelectual,
valorizando portanto muito a razão, Pascal desconfia da razão, apalpando
e denunciando frequente e fortemente seus limites. Ainda que defina o ser
humano e sua dignidade em conexão com a razão e o pensar, Pascal entende que o
conhecimento da verdade não pode ser atingido apenas pela razão que, para
ele, anda junto com a fé e reconhece o momento em que deve submeter-se. Apesar
de afirmar que a substância do ser humano é feita de uma aspiração e há no
fundo de cada pessoa uma espécie de presença divina que ultrapassa a natureza
humana - precisamente o contato com o infinito - afirma igualmente que se
Deus existe é incompreensível pela razão humana. É neste ponto que ele afirma o
conhecimento pelo coração. O coração, portanto, segundo o filósofo francês, não
é apenas sentimentalidade, mas sim o que constitui o ser humano mais
substancialmente, é sua natureza mais profunda. Ali é onde pode haver uma
comunicação por contato com Deus.
A frase mais
conhecida de Pascal é: “ O coração tem razões que a própria razão desconhece.”
Assim, opondo-se ao racionalismo e ao fideísmo, Pascal vai situar ao mesmo
tempo a importância do coração na concepção de ser humano e seus limites.
Pois, se reconhece a primordialidade do coração para um equilíbrio entre o
corpo e o espírito, Pascal também admite que excluir a razão é um excesso não
admissível, e tão reprovável quanto magnificar-lhe excessivamente a
importância.
Dois eventos nos
chamam a atenção neste mês de junho. O primeiro é o Dia dos Namorados,
quando os corações apaixonados se declararão por enésima vez um ao outro e
trocarão presentes e afagos. Outra é a ênfase que a espiritualidade
cristã traz neste mês em torno do coração de Jesus. Aos apaixonados de ontem,
de hoje e de sempre o coração de Jesus, que pulsou e bateu no peito do galileu
que fez a história girar sobre seus gonzos mostra que só se conhece bem - e
portanto só se ama verdadeiramente - com o coração. Porém, é inadmissível
que um verdadeiro amor seja feito apenas de sentimentos que podem ser
superficiais se não passam pela reflexão e a ponderação da razão.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia
da PUC-Rio e autora de “Mística e Ascese: da tradição platônica à
contemporaneidade” (Editora Vozes), entre outros livros.
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