FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(04/05/2021)
O grande romancista Machado de Assis, para
muitos entendidos o maior da nossa literatura nacional, escreveu um
conto-novela intitulado "O Alienista". No tempo em que o li, pela
primeira vez, não tinha alcançado uma visão crítica da sociedade, nem de mim
mesmo, suficiente para entendê-lo em conexão com a realidade. Relendo-o, muitos
anos depois, me encantei com a coincidência de redescobrir um destrinchador de
almas, numa hora em que estava carente de lucidez.
Dr. Simão Bacamarte, médico respeitado e
aplaudido em terras de Brasil, Espanha e Portugal, casado com D. Evarista,
escolhida para a função de gerar filhos robustos e inteligentes, resolve
dedicar-se, por inteiro, ao estudo da mente humana. Consegue autorização para
abrir uma clínica, com o intuito de avaliar cientificamente a loucura das
pessoas. A nova clínica se chamará Casa Verde.
Dr. Bacamarte começa então a selecionar os
moradores de Itaguaí (cidade onde se estabeleceu), necessitados de
internamento. Os que eram realmente loucos foram os primeiros, e isso teve a
aprovação geral dos itaguaienses. Mas, um belo dia, ele achou por bem internar
o Costa, um moço que herdara uma fortuna, mas perdera tudo, emprestando
dinheiro. As coisas começaram a desandar. Nem D.Evarista escapou. Após uma
noite de insônia, por não conseguir escolher uma roupa para uma festa do dia
seguinte, ela foi avaliada como internável, e internada.
Foi então que se deu um levante popular, a
"Revolta dos Canjicas", liderada pelo barbeiro Porfírio, o qual
atendia pela a alcunha de Canjica. A revolta começou a enfraquecer a partir do
momento em que o Dr. Bacamarte resolveu não cobrar mais pelos internamentos;
grande parte dos moradores passou a vê-lo como generoso, avesso à corrupção. E
fracassou de vez quando Porfírio, que tinha pretensões políticas, descobriu que
mais proveitoso para sua ascensão ao poder era aliar-se ao médico. Então ergueu
uma nova legenda: "Unamo-nos e o povo saberá obedecer".
Os revolucionários foram todos presos, a
começar pelo vereador Galvão; este apresentara na Câmara um projeto de lei, que
impedia o internamento de vereadores. Havia também o botânico Crispim Soares,
mal visto por curvar-se a todas as vontades do Dr. Bacamarte, com o único
objetivo de levar vantagem, tirar proveito.
Àquela altura, com 75% dos moradores
internados, o Dr. Bacamarte resolveu refazer a sua teoria, mudando seus
critérios. Se uma maioria tão ampla não seguia um padrão e apresentava desvio
de personalidade, louco mesmo era quem tinha comportamento regular e firmeza de
caráter. Não viu outra saída senão internar a minoria.
Uma bela manhã, o Dr. Bacamarte acordou
com uma idéia insofismável de que, em Itaguaí, havia um único cidadão sem
qualquer desviu de caráter: ele mesmo. Internou-se na Casa Verde e ali
permaneceu sozinho. Morreu 17 meses depois.
Um gênio ao nível de Machado de Assis não
escreveria um conto deste sem segundas e profundíssimas intenções. Com
certeza Casa Verde não era simplesmente
a clausura dos loucos, mas sim um reflexo, um retrato da sociedade brasileira,
como ele a via no século XIX, com suas
relações de futilidades, fingimentos e aparências, nutrindo a sociedade. Com seus rituais de bajulação, subserviência clientelismo,
sustentando os escalões do poder. Era também uma crítica mordaz à
ciência, com sua pretensão de ter resposta e cura para todos os males, em busca
do progresso. Era enfin um deboche da loucura como paródia a uma nova ordem
desejada, que em nada modificava a ordem estabelecida.
Enfim, Machado de Assis escreve uma
alegoria sobre a natureza humana, válida para todos os tempos. Daí o seguinte
convite: a quem apresentar a melhor
interpretação atualizada desta novela, se oferece uma viagem à Itaguaí, com
todas as despesas pagas, onde se terá oportunidade de visitar a mansão
reformada da Casa Verde, e visitar o "Memorial Simão Bacamarte", o
alienista que assumiu a (a)ventura de operar uma mudança radical, descobrir a
cura universal para a loucura, mantendo a fé inabalável no primado da razão, até
descobrir, finalmente, que ele mesmo era o único alienado da História.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano,
coordenador da Tenda da Fé e escritor
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