Frei Aloísio Fragoso
Por respeito à memória do genial
autor de "Ensaio Sobre a
Cegueira", continuemos visitando o manicômio onde ele internou todos os
habitantes de uma cidade grande, à exceção da "mulher do médico". Nosso
intuito é descobrir mais a fundo as razões subjetivas deste enclausuramento
que, por um triz, não foi total. Somos movidos também pela suspeita de que
vamos nos reconhecer ali dentro. José Saramago não teria ganho o prêmio Nobel,
se esta suspeita não fosse comum aos habitantes de todas as cidades do mundo, as grandes ou as menores.
(Chego a imaginar a figura do Papa
Francisco caminhando em meio a estas ruinas humanas, denunciando o que ele
chama "cultura da
insensibilidade", ao tempo em que se desenrola o que ele descreve como
Terceira Guerra Mundial, com batalhas esparsas, travadas aqui, ali, acolá, por
toda parte)
O manicômio se divide entre "cegos
malvados" e "cegos resignados" A fome e o medo forçam estes
últimos a se habituarem aos desmandos da tragédia.
(Abro novo parêntese para acender um
alerta real: como enquadrar, nesta situação, a caridade humano-cristá de
distribuir cestas básicas com famintos
de algumas comunidades pobres? Dentro de mim, e de outros, há um embate
constante entre a necessidade inadiável de socorrê-los, uma vez que a fome tem
pressa e não tem ideologia, e a outra necessidade de que não se embote a consciência
de seus direitos, nem se aplaque a justa
revolta, que estimula para a luta. Por enquanto, usamos a modesta estratégia de
ajuntar a cada cesta básica uma breve carta conscientizadora).
Enfim, não há como fugir à pergunta mais
crucial: e as consequências para o futuro? O que torna impossível prevê-las é
justamente a cegueira. Como escreve Saramago: "se antes de cada ato nos
puséssemos a prever suas consequências, a pensar nelas a sério....não
chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito
parar"
Enquanto a "mulher do médico"
exclama perplexa "o inominável existe!", surge um personagem
providencial, "a mulher do isqueiro". Graças a ela, abre-se uma luz
no escuro do manicômio. Que luz é esta?
Prometo finalizar, no próximo capítulo,
esta novela, que já me deu nervoso, imaginando a impaciência dos leitores por
uma solução final. Só não consigo admitir que o grande humanista Saramago
escreva um "Ensaio Sobre a Cegueira" que não acabe sendo um "Ensaio
Sobre a Visão".
Enquanto aguardamos a peripécia da
"mulher do isqueiro", meditemos sobre o que Jesus queria significar
quando declarou: "Vim trazer fogo
sobre a terra e como desejaria que ele já estivesse aceso" Lc.12,49.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano,
coordenador da Tenda da Fé e escritor
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