FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(02/06/2021)
Em tempos de turbulência social, emergem
com mais clareza certas verdades que ficam submersas em épocas normais. Uma
delas é a natureza paradoxal dos fatos, idéias e sentimentos, que vão se
desenrolando e marcando o ritmo da História.
Fui deitar-me ontem com a mente recheada
de paradoxos. O que daí resultou foi acordar na madrugada, com meus
"demônios" em plena atividade, jogando lenha na fogueira de
indignação, que me queima nos últimos dias. Enquanto isso, meus anjos da guarda
se omitem e não intervém para apagar as chamas. Certamente eles percebem que
este fogo pode ser bemfazejo e ficam no aguardo.
Distancio-me momentaneamente da realidade,
a fim de enxergá-la melhor, e busco um ponto de vista que me ofereça outros olhos, pois os da face
estão cansados e míopes. Meu anjo da guarda me aconselha a usar uma lente que
permita desvendar mistérios. E até me oferece um mote literário: "Tudo, aliás,
é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Quando nada
acontece, há um milagre que não estamos vendo" (João Guimarães Rosa).
No entanto, eu tenho primeiro que superar
um entrave, esta raiva dentro d'alma, ao ver tanta gente cometendo um pecado
imperdoável,
o pecado de não querer
ver, o pecado contra a luz, o pecado de apagar a luz de propósito para não ver,
de fechar os olhos para não ter que ver, e, em última instância, dar um tiro de
misericórdia na visão com um rotundo "filho da puta!". Pronto, um
palavrão me apaga a lâmpada de Aladim e me devolve à realidade árida, onde o
único mistério é o de não entender a estupidez humana.
Volto ao mundo pandêmico dos paradoxos.
Embora sendo claramente um produto da globalização, sua disseminação abriu-nos os olhos para
outras verdades que estavam submersas ou proibidas de vir à tona. Despertou-nos
para o fato de que a maioria de nossas doenças são endógenas, causadas por
nossas condições de vida, pela qualidade do nosso alimento, pela toxidez de
nossos ambientes. Mostrou-nos às claras que nossa busca obsessiva de saúde visa
favorecer a vaidade física, o mito do super-homem, o narcisismo, a indolência ,
e não o equilíbrio físico e mental. Em suma, não estávamos preparados contra o
ataque dos vírus.
A pandemia exacerbou o fundamentalismo
anti-científico de negacionistas, de terraplanistas, com sua vertente
religiosa, que adota a tradição como referência absoluta dos valores morais, e
gera batalhões de fanáticos, empunhando o nome de Deus, como arma de
extermínio. Como não dar razão a Rousseau, quando ele escreve: "mais vale
não ter nenhuma idéia sobre Deus do que cultivar idéias grosseiras, injuriosas,
indignas da Divindade. Antes desconhecê-La do que ultrajá-La"; como não
dar-lhe razão?
Esta pandemia devolveu-nos, do nosso complexo de super-homens para a
condição de pigmeus, diante de um inimigo invisível e imprevisível. E a morte
que importamos e
e exportamos com guerras, fome, devastação de
meio ambiente, agora espera por nós ali na esquina. E fomos abatidos pelo
reconhecimento inevitável de que não basta destruir a brutalidade contagiosa do
coronavirus, é preciso eliminar outros virus que produzem a cegueira moral.
A visão mal-assombrada dos paradoxos refaz
em mim a necessidade de usar outra vez a lente de olhar o Mistério. Valho-me de
um trecho da carta de São Paulo aos coríntios: "Ninguém se iluda, se
alguém pensa que é sábio, segundo os critérios deste mundo, trate de tornar-se
louco, para chegar a ser sábio." 1Cor. 3,18. "Através da loucura que
pregamos, Deus quer salvar os que crêem. Ele escolhe o que é loucura no mundo
para confundir os pretensos sábios, e o que é fraqueza, para confundir os que
se fazem de fortes" 2Cor.1,21ss.
Em vez de uma Reflexão, acabo de escrever
um desabafo pessoal. Na verdade, não estou de mal com o mundo, estou com grande
raiva, e prefiro guardar muitos dos seus fatos no cofre dos mistérios,
esperando o momento em que Deus vai se aproveitar das nossas linhas tortas para
reescrever corretamente a sua História.
Frei
Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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