FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(13/05/06)
Há, em nosso idioma, um ditado que diz
"de médico e louco todo mundo tem um pouco". Prefiro uma outra
versão, a que acrescenta um terceiro personagem, o poeta, pois a poesia fica
bem em tudo quanto é lugar e não há quem não guarde n'alma um ninho de poesia. "De
médico, poeta e louco...."
Senti o realismo deste saber popular ao
ler comentários de leitores e leitoras sobre o tema de nossas últimas
Reflexões, a loucura. Não por mérito do que escrevi, e sim pela genialidade de
Machado de Assis e José Saramago, dos quais longamente me servi para escrever.
Dos comentários lidos colhi estranhas impressões. Este pouco de
loucura escondida em nossa natureza parece algo maior do que uma simples figura
proverbial, algo sinônimo de segredo, enigma, reino encantado, que a gente
sonha desvendar. Um espaço secreto onde a loucura conserva uma parte de razão e
beleza de que carecemos. Fico com estas sensações em suspenso porque não me
atrevo a entrar em "casa mal-assombrada". Mas deixo uma provocação: será
que não somos todos infectados por um virus mais perigoso do que o covid: o
excesso de normalidade?
Gostaria, no entanto, de levar adiante as
impressões que me causou a obra "Ensaios Sobre a Cegueira", do
português José Saramago.
Muitos acontecimentos públicos que se
desenrolam atualmente em nosso país assemelham-se a uma reprodução teatral desta obra. Saramago nos convida a
entrar no complexo mundo da fantasia para avaliar a nossa existência real.
Em meio à cegueira que acomete todos os
habitantes da cidade, obrigando-os a se internarem em um manicômio (ou se
transmutarem em um manicômio), uma única pessoa escapa, permanece sã, com a
visão integral; é "a mulher do médico". Contudo, este seu privilégio
não lhe será motivo de contentamento. Ela estará condenada à dor de ver, de enxergar a trrível realidade
produzida pela cegueira geral.
Como não associar este personagem a muitos
companheiros e companheiras, perambulantes em meio a esta catástrofe política,
social e pandêmica do país, tendo de encará-la com lucidez, em suas origens e
sequelas!? Conto-me entre estas pessoas.
Não maldigo o fato de ser lúcido (ou de estar lúcido), pois, graças ao dom da
Fé, posso associar lucidez e transcendência. Somos parte de um todo que procede
do Absoluto e retorna ao Absoluto. Imagino como deve ser insuportável a lucidez
solitária. Minha fé não me isenta do temor de que podemos perder o equilíbrio,
podemos perder a saúde, se nos arriscarmos na luta, porém, se não corrermos
este risco, podemos perder-nos a nós mesmos para sempre. Nesta Fé encontramos o
antídoto contra o desespero e a solidão.
"A mulher do médico"
experimenta o impasse de poder ver em meio a cegos, percebe o perigo e prefere
esconder sua verdade. Só a revela ao marido, cego também. O sigilo a protege, a
partilha com o marido a liberta da solidão. Semelhantemente, a legenda
"ninguém solta a mão de ninguém" adquire uma dimensão mística de
libertação.
É significativo o detalhe do autor não dar
nomes próprios a seus personagens. Eles são identificados pela profissão ou
alguma característica individual. A cegueira moral despersolaniza. Os cegos
moralmente não precisam de nomes, são reconhecidos pelo coletivo (gado, galera,
boiada), pelos gritos (mito!), pelas máscaras policromadas. A cegueira é uma
metáfora do colapso visual dos que não querem compreender ou não querem
confessar sua incapacidade de compreender. Ela impera no reino da mediocridade.
Saramago chama-a "cegueira
branca", facilmente identificável como egoismo, medo, conformismo,
insensibilidade. "Ainda está pra nascer o ser humano desprovido daquela
segunda pele a que chamamos egoismo, bem mais dura do que a outra que, por
qualquer coisa, sangra", escreve. "A mulher do médico", forçada
a testemunhar a degradação humana, sente-se incapacitada. "Já éramos cegos
no momento em que cegamos. O medo nos fará continuar cegos", pensa ela, em
lugar dos demais.
Ela vencerá o medo? O que sucederá neste
manicômio? Seria trair a intenção de Saramago concluir a reflexão a esta altura
dos fatos. Precisamos ir adiante. Enquanto isso, meditemos sobre aquela passagem do Evangelho, quando os
doutores da lei reclamam de Jesus por compará-los aos cegos.
"Se fosseis cegos de
verdade, respondeu Jesus, seríeis menos culpados, mas porque dizeis que podeis
ver, vosso pecado é bem maior" Cf. Jo.9, 41.
Frei Aloísio Fragoso é frade franciscano,
coordenador da Tenda da Fé e escritor
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