Frei Betto
Também o
diversionismo ideológico. Alberto Fernández, presidente da Argentina, declarou
em diálogo com Pedro Sánchez, premiê da Espanha: “os mexicanos saíram dos
índios; os brasileiros saíram da selva; mas nós, argentinos, chegamos dos
barcos – barcos que vinham da Europa”.
Há
brasileiros que se sentiram ofendidos. Não é o meu caso. Fernández tem razão,
viemos da selva e da senzala. Foi o que constatou o Projeto Genoma 2000 ao
pesquisar o DNA predominante dos brasileiros. Sinto-me honrado ao saber que
descendo de duas etnias oprimidas por nossos colonizadores. E altamente
civilizadas.
Por isso,
me recuso a usar expressões como “capitalismo selvagem”. Os originários da
selva, os povos indígenas são, por natureza, anticapitalistas. Não são
competitivos, mas solidários; não acumulam, partilham; não devastam a natureza,
preservam. E, ao contrário de nós, brancos urbanizados, não vivem para
trabalhar, mas trabalham para viver.
Foi dos
negros, trazidos ao Brasil como escravos pelos europeus “civilizados”, que
herdamos tradições religiosas como o candomblé, técnicas de agricultura e
metalurgia, a capoeira e o samba, e pratos como vatapá, feijoada, caruru,
mungunzá, acarajé e pamonha.
O que
repugno no discurso de Fernández é essa empáfia de achar que descender de
europeu é prova de requinte humano. Perguntem aos asiáticos quem promoveu a
Guerra do Ópio; aos africanos, quem explorou suas riquezas naturais, dizimou
seus animais e desencadeou massacres genocidas; aos latino-americanos e
caribenhos, quem trucidou milhões de indígenas altamente civilizados, doutores
em matemática, meteorologia e astronomia, construtores de cidades monumentais
como Tenochtitlán, no México, fundada em 1325 pelos astecas, Machu Picchu, no
Peru, edificada pelos incas em meados dos século XV.
Foram os
europeus que, do alto de sua pretensa superioridade (só efetiva quanto aos
arsenais bélicos) que levaram, aos três continentes, saques, violência, escravidão,
massacres e mortes.
Isso não
significa que eu seja antieuropeu. Sou contra mentiras históricas. Sei muito
bem o quanto a Europa nos legou em todos os campos do saber, da arte e do
fazer. Mas sei também quanta ciência os árabes ensinaram aos europeus e quanta
tecnologia os europeus aprenderam com os chineses.
É asneira
debater que povo é mais culto do que outro. Não existe ninguém mais culto do
que o outro. Existem culturas distintas e socialmente complementares. O que
seria de Einstein sem Maria, a cozinheira porto-riquenha que lhe preparava as
refeições? E se pesar na balança quem dependia mais da cultura do outro? Maria
passava muito bem sem a menor noção de como funcionam as leis do Universo. Mas
Einstein dependia da cultura culinária de Maria para sobreviver.
Não me
alongo aqui sobre a ignorância de Fernandez quanto às origens indígenas do povo
argentino, que aprendi ao visitar Santiago del Estero, a primeira cidade do
país. O ex-presidente Macri já havia cometido a mesma gafe no Fórum Econômico
de Davos, em 2018, ao afirmar que “todos os argentinos” são “descendentes de
europeus”.
O que
realmente me preocupa é o branqueamento da cultura. É pior que o racismo.
Porque, ao repudiar o negro, o branco sinaliza que enxerga o negro. Preocupante
é quando o outro sequer é notado. Como acontece com Sérgio Camargo, presidente
da Fundação Palmares. Sua mentalidade é tão lavada pelo OMO ideológico que, no
espelho, não logra enxergar a cor da própria pele.
Estranho
quando vejo chamarem os negros de “afrodescendentes”. O termo surgiu em 2001,
na conferência da ONU sobre racismo e xenofobia, em Durban, África do Sul. Isso
é invenção de gringo, “made in USA”, para advertir os negros: “Vocês não são
daqui. Comportem-se! Caso contrário, serão deportados para a África!”
Ora,
jamais fui chamado de lusodescendente, iberodescendente ou eurodescendente. E
estranho quando leio romances em que a maioria dos personagens é, supostamente,
branca, o que dispensa o autor de explicitar a cor da pele. Mas, em se tratando
de personagem negro...
A luta
antirracista tem que incluir o combate ao branqueamento da cultura. Se OMO lava
mais branco eu não sei. Sei que o supremacismo branco, hoje incrustado no
Palácio do Planalto, precisa ser urgentemente raspado, com palha de aço, de
nossa cultura e de nossas atitudes.
Frei Betto é escritor, autor de “Por uma educação
crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros. Livraria virtual: freibetto.org
Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil
e no exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org Ali os
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