FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(23/10/2021)
Qualquer pessoa que tenha feito uma
experiência de amor real e profunda percebe que o amor fala linguagens
diferentes, de acordo com as suas diferentes fontes vitais. A maioria das
pessoas, contudo, na pressa de desfrutar de seus prazeres, limita-se a uma
única linguagem, a dos sentidos, da sensualidade.
Vivemos numa sociedade onde há uma
superabundância de estímulos sensuais externos (praias, out-doors, casas de
show, bancas de revista, etc.). No entanto, quanto mais estímulos são
oferecidos, tanto mais é preciso oferecer. O excesso de visibilidade comprova
por si mesmo que esta sociedade encontra-se deserotizada. A sobrecarga de
erotização destruíu o verdadeiro erotismo.
Foi preciso criar uma nova terminologia
enquadrada nestas circunstâncias; fala-se em "fazer amor" e em
"fazer sexo". O amor foi partido em dois. Como se o sexo tivesse de
pagar tributo ao amor, pagar-lhe uma taxa extra para redimi-lo do pecado. Isso
porque se o prazer sensual fosse dispensado de qualquer sentido ético, a vida coletiva
estaria sob ameaça.
Os que querem ir mais a fundo neste
assunto mergulham no estudo de Sigismundo Freud. Por motivo de ignorância, não
me arrisco a jogar a rede em águas profundas; prefiro pegar peixe miúdo na
superfície, apenas lembrando que, para Freud, todos os amores são derivados do
amor erótico, todos estão ligados a uma base de energia psico-física chamada
libido.
Enquanto alguns poucos entendidos discutem
Freud, uma procissão infinita de viventes vai desfilando e movendo-se à procura
do único bem que conta com a aprovação unânime universal, o mais valioso e
apreciado, o bem supremo: a felicidade. Segue esta multidão numa marcha
apressada, competitiva e dispendiosa. Não há tempo de perguntar "o que é a
felicidade?". Novento e nove vírgula nove por cento concorda, de antemão,
que ela tem que ter o gosto inconfundível do prazer sensorial. Onde não houver
prazer dos sentidos não há felicidade.
Uns descobrem migalhas e outros miragens
de felicidade. Uns se empanturram de objetos de consumo, outros vomitam de
tédio. Alguns matam e outros se deixam morrer. Poucos fazem fortuna, a maioria
empobrece. Uns desmaiam de overdose, outros, de fome. Não poucos enlouquecem.
Ouve-se de longe a voz de uma criança "felicidade é o peixinho comer a
isca sem se machucar no anzol". E ouve-se também a voz forte de uma jovem
a cantar "felicidade é uma calça jean azul e desbotada". Um poeta com
80 anos desnuda as ilusões e escreve "há duas épocas na vida em que a
felicidade está numa caixa de bombons"(C.D.A.). Enfim, um flósofo filosofa
"estamos condenados a ser felizes" (Sartre). Mas, aconteça o que acontecer, nada ou
ninguém consegue deter a marcha inexorável e a multidão continua perambulando
pelo mundo, sem ver o seu ser. Sucede, vez por outra, que alguém escapa e vai
olhar à distância e percebe que toda essa multidão não é senão uma ilha. E se
lhes abrem os olhos. Destes falaremos no próximo capítulo.
Inesperadamente infiltra-se nesse meio um
fantasma invisível. E por ser invisível, recebe um nome simbólico: coronavirus.
Ele ataca e, ao mesmo tempo em que espalha dores e mortes, deixa lições
inesquecíveis. Sendo a melhor delas a seguinte: O amor mais necessário e
eficaz, na luta pela vida, tem sido amor desvinculado de seus componentes de
erotismo e sensualidade. Vimos profissionais da saúde salvar vidas a preço de
ingentes sacrifícios. Cientistas dia e noite isolados em suas pesquisas até
alcançar a descoberta da almejada vacina. Pais e mães juntando suas últimas
forças de reserva, a fim de garantir a harmonia da família, exaurida numa longa
e compulsória quarentena. Anônimos trabalhadores de hospitais, garantindo a
imprescindível higiene. E outros tantos preservando a dignidade dos mortos, no ato de devolvê-los ao seio da
terra. Heróis e heroinas desconhecidos, indiferentes ao risco da própria vida,
desde que pudessem acompanhar cada instante dos seus entes queridos, que
caminhavam para o fim.
O que há de prazer sensorial nestes
verdadeiros holocaustos de amor ao
próximo? Perguntemos aos seus protagonistas e os ouviremos falar de uma satisfação transcendente, vivida na
profundidade da alma, a que nenhum outro prazer se compara, vinda desta descoberta:
"não há maior prova de amor do que dar a vida..." Jo.15,13.
Frei Aloísio Fragoso é
frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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