FREI ALOÍSIO FRAGOSO
21/10/2021
Segundo o livro do Gênese, no início da
Criação, o Universo era apenas um imenso vazio. Então o amor de Deus começou a
pulsar e todas as coisas passaram a existir. O mundo criado é, pois, uma
expansão do amor divino. Sua substância, sua matéria prima é moldada no amor.
Daí nascemos nós, por um ato de amor e, a vida inteira, travamos uma ardente
batalha de amar e ser amados. Até sermos um dia mergulhados na eternidade onde,
escreve S. Paulo, "Deus será tudo para todos".
Este belo hino cósmico ao amor encontra
fundamento na realidade? Uma coisa é o que é o amor, outra coisa, o que
dele fizemos. O próprio mundo que construímos
para nossa habitação não o favorece, ao contrário, propõe objetivos que lhe
roubam as condições de bom êxito.
Haverá uma relação intrínseca que faça uma
ponte entre amor, sensualidade e espiritualidade? Pagamos promessa da reflexão
anterior, cedendo a palavra aos grandes místicos:
Sto. Agostinho foi uma mente genial em
falar coisas belas e profundas sobre este assunto. "Amor pondus
meus", dizia ele, "o amor é meu centro de gravitação". E ousava
"pressionar" o próprio Deus: "não me negues o que amo, Senhor,
pois me deste o dom de amar". Contudo, jamais conseguiu conciliar os dois
tempos da sua existência, os anos da juventude, repleto de aventuras sensuais,
e os anos posteriores da sua conversão. Ao filho que teve, e amava ternamente,
deu o nome de Deodato ( dado por Deus), mas também o chamou de "fruto do
meu pecado". O grande Agostinho fica sendo um exemplo a mais das
incoerências humanas, a que nem os santos escapam. Nele o amor sublimado acabou
asfixiando o amor carnal e isso teve uma influência marcante na doutrina moral
da Igreja até hoje.
Sto. Tomás de Aquino, outro gênio do pensamento
cristão, coloca, entre os primeiros anseios do amor, o êxtase. A pessoa movida
pela paixão foge do habitual para o excepcional. A paixão o leva para fora de
si e o põe em estado de êxtase.
Sta. Teresa D'Avila, uma das maiores
místicas do cristianismo, levitava com frequência. A lei da gravidade não podia
deter o seu voo apaixonado para Deus
("vivo sem viver em
mim e tão alto bem almejo que morro por não morrer", escreve ela).
Engana-se quem pensa que os grandes
místicos foram privados de todos os prazeres prometidos aos amantes. No mundo
da transcendência eles descobriram um manancial de prazer incomparável e
inesgotável. Só quem os experimentou sabe a diferença.
A pandemia do coronavírus tem sido uma
oportunidade ímpar de enxergarmos os paradoxos de uma sociedade mercadora de
sensações hedonistas. Ocupada 24 horas em produzir objetos de consumo, ela não
se dá conta do que se passa na alma dos seus clientes. O coronavírus, fazendo
jus ao próprio nome, tirou-nos do trono de nós mesmos e devolveu-nos a nossa
real dimensão; obrigou-nos a reavaliar nossas relações nas várias esferas da
existência e repensar nossas vidas; derrubou os mecanismos montados para
legitimar as seduções e promessas do Mercado; aniquilou de vez a confiança em quaisquer
atitudes de auto-suficiência. Ao final, nos deparamos com uma verdade
assustadora: nossos maiores inimigos somos nós mesmos.
Por outra parte, trouxe-nos a certeza de
como somos peças importantes, indispensáveis, para a sobrevivência do planeta.
E mais, confirmou que a única referência insubstituível de prazer confiável e
duradouro está na relação com nosso semelhante. Tudo isso pode significar uma
guinada na concepção do amor humano, favorecendo o equilíbrio entre
sensualidade e espiritualidade. O tempo dirá se a lição foi apreendida.
Enquanto esperamos, anima-nos a advertência de S. Paulo: "ainda que se
corrompa o nosso homem exterior, o interior se renova dia a dia" 2Cor.
4,16.
Frei
Aloísio Fragoso é frade franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor
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