FREI ALOÍSIO FRAGOSO
(26/03/2021)
Um dia, narra o Evangelho de João, um
certo fariseu chamado Nicodemos procurou Jesus, nas caladas da noite, confessou
sua admiração e se propôs a um longo diálogo pessoal. Jesus o acolheu. Em um
determinado momento da conversa, lhe disse: "Nicodemos, para entender
minha doutrina, é necessário nascer de novo" cf.Jo.3,3ss. - "Como
pode alguém voltar ao útero da mãe e nascer outra vez?", replicou
Nicodemos. E Jesus estranhou que um doutor de Israel não compreendesse o
sentido de suas palavras.
Muitos anos depois, nas comunidades cristãs,
nasceu uma lenda em torno deste episódio. Ela conta o seguinte: depois da
ressurreição do Senhor, Nicodemos, novamente nas caladas da noite, foi ao
encontro Dele. "Mestre, falou-lhe, preciso de tua ajuda neste momento.
Dei-me ao trabalho de escrever um novo Evangelho sobre tua pessoa e doutrina.
Dediquei-me a esta tarefa anos a fio, com todo afinco e muito amor. No entanto,
ninguém está lendo, ninguém se interessa por ele, nem mesmo teus apóstolos. Vim
pedir a tua interferência em favor da divulgação do meu Evangelho, ele te fará mais conhecido e mais amado. Jesus
respondeu: Nicodemos, meu amigo, tu me procuraste um dia às escondidas, lembra?
no escuro da noite, com medo dos Sumos Sacerdotes. Onde estavas quando eu
falava ao povo publicamente, nas ruas e praças? Onde estavas quando teus
sócios, os fariseus, e os doutores da lei me levaram ao tribunal e me julgaram
e me condenaram? Onde estavas quando me crucificaram? E agora queres divulgar
um Evangelho para provar a tua fé? Não, amigo secreto, não posso te ajudar.
Vai, antes, ter com Pedro, Tiago e João, escuta o que eles tem a dizer. Depois
voltaremos a nos encontrar.
A figura de Nicodemos tornou-se
paradigmática, representativa de uma atitude moral frente aos grandes conflitos
humanos, a qual chamaremos aqui de neutralidade.
No tribunal da História os neutros tem
sido julgados com grande severidade. Vejamos o que dizem alguns gênios do
pensamento filosófico. Shakespeare: "ser ou não ser, eis a questão".
Maquiavel: "quem fica neutro é sempre odiado pelos que perdem e desprezado
pelos que vencem". Dante Alighieri: "em situação de graves conflitos,
quem permanece neutro, merece o lugar mais quente do inferno".
Estas duras sentenças não são mais duras
do que outras registradas na Bíblia. "Que o vosso sim seja Sim, que o
vosso não seja Não! O que passa daí é obra do Maligno" Mt.5,37.
"Oxalá fosses quente ou frio, mas
porque és morno, nem quente nem frio, vou te vomitar para fora da minha boca"
. Apoc.3,15-16.
Estamos às vésperas da Semana Santa.
Voltaremos a reviver os últimos acontecimentos da vida terrena de Jesus.
Reviveremos aquela cena dramática diante do tribunal de Pilatos. O Procurador
romano, demagogicamente, instiga o povo a tomar posição: "O que devo fazer
com o Nazareno?" E a multidão, manobrada pelas autoridades religiosas,
grita :
- Crucifica-o!
Crucifica-o!
Onde estava Nicodemos neste momento? Mas não devemos reduzir a pergunta à memória
do passado. Esta cena se repete sempre de novo. Onde estava eu? Onde estávamos
nós? Onde estávamos quando o justo foi perseguido e condenado? Onde estamos quando o povo é submetido à
servidão e à exclusão? Quando algum
irmão, seja quem for, é abandonado à noite da solidão? Onde estivemos enquanto
300.000 compatriotas foram recrucificados?
A neutralidade se revela em variados
comportamentos. Imaginemos alguns que são encontráveis na prática religiosa:
- Prometer para o futuro os milagres da fé
em vez de realizar logo os milagres do amor.
- começar uma homilia com protestos de
indignação e terminá-la com apelos à resignação.
- Amaciar as palavras do Evangelho,
encobrindo a sua radicalidade.
-
Orar o tempo todo para não ter tempo de ir à luta aberta.
- Discursar sobre o amor do Pai para
filhos que sofrem fome.
-
Amar "todos os pobres da terra" como pretexto para não se
comprometer com nenhum.
- Levantar a bandeira branca da "paz
pela paz", ignorando que a paz é fruto da justiça.
- confundir com a virtude da prudência a
cumplicidade do silêncio.
- Tornar-se o maior revolucionário do
mundo, on-line.
- em resumo, dizer e desdizer, ser e não
ser, sempre com o mesmo fim: não tomar posição.
Se Jesus tivesse atendido ao conselho do
amigo Pedro, às portas de Jerusalém, e voltado para sua casinha de Nazaré, e aí
permanecido na tranquilidade, confessando e aconselhando seus fiéis,
provavelmente teria vivido até os 80 anos. Contudo, sua obsessão era fazer a
vontade do Pai. E Ele tinha clara
cinsciência de até onde o levaria sua fidelidade: "Vim a este mundo
receber um batismo de sangue e minha alma está inquieta enquanto este batismo
não se consumar" Lc.12, 4ss
Foi este o preço da nossa Redenção.
Frei Aloísio Fragoso é frade
franciscano, coordenador da Tenda da Fé e escritor.
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