Maria Clara Bingemer
Acho bonito as pessoas tirando foto do momento em que são
vacinadas. Comecei a reparar nisso quando a primeira senhora britânica de
mais de 90 anos foi vacinada e disse estar “altamente aliviada”. Depois foram
idosos de ambos os gêneros e em melhor ou pior estado de saúde. Sempre a foto
acompanhando o evento histórico de receber a vacina. Amigos e amigas já
próximos de minha idade também documentaram sua experiência.
O que há de tão transcendental nesse ato de imunizar-se e oferecer o
braço para receber a espetadela que carrega um líquido impregnado de
esperança? Em que essa vacina difere das outras? Por que nos traz essa
emoção como se a vida entrasse em nosso corpo com a inoculação do líquido que
promete imunizar-nos em boa proporção contra a pandemia que aterroriza toda a
humanidade?
Existem vários elementos que me parecem fazer dessa vacina tão ardentemente
esperada não apenas um evento sanitário, mas igualmente um evento inspirador e
revelador do que é a condição humana.
Somos
seres relacionais. Não existimos senão coexistindo e convivendo. Isso é
verdade desde que o Criador pronunciou no sexto dia sobre a criatura que
formara do barro e em cujas narinas soprara o hálito da vida: “Não é bom que o
homem esteja só”. A vocação de Adão é a comunhão e não a solidão. E
quando a Adão foi dada a companheira Eva, mãe dos viventes, a comunhão
aconteceu. A alteridade a instituiu e isso foi muito bom, disse Deus,
antes de descansar ao sétimo dia contemplando sua obra.
É
fato que após isso Adão e Eva romperam essa comunhão. E por isso é tão
trabalhoso reconstituí-la. Somos todos Adão e Eva que buscamos a vida com
dificuldades e dor, mas também a fruímos com gozo e deleite. E todos
experimentamos o desejo da comunhão plena em todos os momentos em que ela se
fragmenta e é obstaculizada pelas várias investidas diabólicas de tudo que
divide e separa.
O
vírus vem sendo uma pedagogia dura e fecunda sobre tudo isso. Os gestos
de proximidade, afeto, amor nos foram proibidos em nome da saúde coletiva.
Foram interditados os abraços e beijos, os encontros, as celebrações
festivas. Nos foram impostas máscaras que erguem barreira entre nós e os
outros. E o álcool e a água e o sabão nos obrigam a exterminar os rastros dos
contatos humanos a cada momento e a cada passo.
Demorou perceber que toda essa separação com relação aos outros, junto aos
quais sempre desejamos tanto estar, era na verdade a forma acertada de proceder
em benefício deles e delas mesmo. O amor que antes se exprimia com gestos
de contato e proximidade agora devia expressar-se por atos de distanciamento em
nome do cuidado e do amor.
A
vacina é um elemento novo que entra nesse cenário. Anunciando esperança
de imunização, baixa de contágio e controle da pandemia, é a única opção que
existe no horizonte para vencer essa tão difícil prova que atravessamos já há
mais de um ano. Por isso, a alegria tão radiante e um brilho de tal
fulgor nos olhos daqueles que após uma longa peregrinação em meio às trevas do
medo e do desânimo agora sentiam poder ter novamente esperança.
Essa
esperança consiste em voltar a poder realizar os gestos do afeto e da comunhão.
Os avós sonham em novamente beijar e abraçar os netos. Os amigos desejam voltar
a poder juntar-se, conversar, rir e cantar juntos, sentir a presença cálida e
estimulante daqueles que se querem bem. Todos desejam andar livremente pelas
ruas, entrar nos cinemas e teatros, ouvir, cantar e dançar em shows musicais,
sem medo e sem barreiras.
Os
que cremos desejamos ardentemente poder voltar a frequentar nossas igrejas em
celebrações com muita gente e poder abraçar os irmãos efusivamente,
desejando-lhes a paz. E comungar o corpo e sangue do Senhor, expressão da
comunhão vital e verdadeira que realiza e conduz à vida plena.
Tantas vacinas já tomamos: sarampo, tuberculose, poliomielite,
antitetânica. Mas apenas a vacina contra a Covid- 19 nos acendeu na
consciência essa convicção de que oferecendo o braço para a tão desejada
espetadela estamos, na verdade, realizando um profundo ato ético.
Já o Papa Francisco que não apenas vacinou-se mas providenciou doses de
vacina para todos os funcionários do Vaticano declarou: “Eu acredito
que, eticamente, todo mundo deve tomar a vacina. É uma opção ética porque você
aposta na sua saúde, na sua vida, mas também na vida dos outros”
Esperemos
que a pandemia nos tenha ensinado em profundidade que nada do que penso ou faço
afeta apenas a mim. Estou conectada com todos os seres vivos e tudo
impacta em tudo. E dentro desse tudo, meus irmãos em humanidade agora me
pedem esse gesto ético, de fé e esperança na vida, de abertura e amor. A
vacina me dá essa oportunidade. Que ela seja o sinal pascal de vitória da vida
nesses tempos de tanta paixão e tanta treva que temos vivido. É uma boa
motivação para uma celebração mais profunda e esperançosa da Semana Santa que
se aproxima.
Maria Clara
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora
de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros
M
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