Maria Clara Lucchetti Bingemer
Hoje, Dia Internacional da
Mulher, não posso deixar de registrar minha emoção ao ler a notícia de que no
último dia 25 de fevereiro de 2021 Carolina Maria de Jesus recebeu o Doutorado
Honoris Causa pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Em meio
a todo o caos que o Brasil vive, com a aceleração exponencial da pandemia, a
escassez de vacinas, as decisões e hesitações chocantes do governo e o drama do
aumento da pobreza, enfim uma novidade luminosa.
Minha
relação com a escrita dessa mulher negra e favelada vem de longe, de minha
adolescência quando, aluna do Colégio Sion, recebemos a indicação do livro
“Quarto de despejo. Diário de uma favelada” como leitura importante a ser feita
para o curso de português. Já antes da leitura, impressionou-me a
biografia da autora. Carolina começara a escrever ainda criança, em sua
Minas natal. E com os escassos dois anos de escolaridade, apaixonou-se pelo ato
de escrever e levou-o para a vida inteira. Vida essa que se desenrolaria em boa
parte em São Paulo, na favela do Canindé, para onde foi após a morte da
mãe. Ali criou seus três filhos trabalhando como catadora de recicláveis,
além de fazer eventuais faxinas e lavar roupa para fora. O papel que retirava
do lixo servia para compor um diário de suas experiências e reflexões, que
depois resultariam em seu primeiro livro. Vendeu 3 milhões de exemplares e foi
traduzido para 16 idiomas.
Hoje,
com o olhar que os muitos anos de teologia me concederam vejo que na escrita de
Carolina concretiza-se uma das muitas frases lapidares de Dom Pedro
Casaldáliga, bispo do Araguaia, profeta e poeta recentemente falecido: “Só
existem dois absolutos: Deus e a fome”. Ambos são os personagens centrais da
obra da doutora Carolina. Lutando contra a fome e buscando a
sobrevivência, Carolina registrou e criou seus filhos sozinha, sem marido ou
companheiro. Nunca se casou e os três filhos foram frutos de relacionamentos
diferentes que tivera.
Nessa luta infindável e diuturna, a fome é companheira inseparável de Carolina.
“A tontura da fome é pior do que a do álcool. A
tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi
que é horrível ter só ar dentro do estômago.” Mordendo seu estômago e o de
seus filhos, trazendo-lhe às vezes a tentação de acabar com tudo para não
sentir mais sua dolorosa presença, a escritora pensa e dialoga com ela. Pesa-lhe mais a
fome dos filhos do que a sua própria: “Os meninos estão nervosos por não ter o
que comer” ou “os meus filhos estão sempre com fome”. A fome própria, no
entanto, está presente de fato com toda a sua crueza e crueldade. E
Carolina constata: “É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”. E essa
lhe parece uma condição necessária para poder exercer com justiça um cargo
público de responsabilidade: “O Brasil precisa ser dirigido por uma
pessoa que já passou fome. A fome também é professora”.
Com sua
impressionante imaginação e talento literário, Carolina atribui até mesmo uma
cor à fome: o amarelo. Ao mesmo tempo, o amarelo em seu livro é a cor da vida.
Todos os dias a escritora abria a janela, olhava para o céu e lá estava o sol,
amarelo e luminoso. Essa luz, a cada manhã era mensagem de esperança de uma
vida melhor, onde as trevas da fome e da miséria seriam vencidas e suplantadas.
Carolina é uma
mulher livre, que por prezar tanto sua liberdade jamais se casou. Vê a
vida que levam suas vizinhas oprimidas pelo machismo dos companheiros e se
regozija de sua escolha de vida. As mulheres que moram na favela como ela e
vivem com seus homens devem “mendigar e ainda apanhar. Parece
tambor. À noite, enquanto elas pedem socorro, eu tranquilamente, no meu
barracão, ouço valsas vienenses... Não invejo as mulheres casadas da favela que
levam vida de escravas indianas.”
Que mulher é essa
que identifica o gênero musical das valsas para expressar sua tranquilidade de
mãe sozinha e sem companheiro? É a mesma que transcende a miséria através
da escrita e envia inclusive mensagens a Deus, em quem pensa e com quem
dialoga, olhando em volta e sentindo sua dura e injusta realidade. “Será que Deus sabe
que existem as favelas, que os favelados passam fome?”. “Só Deus para ter dó de
nós”. “Deus é sombrio. É o advogado dos humildes. Os pobres são criaturas de
Deus”. “Deus precisa iluminar os bancos para que os pretos sejam
felizes.”
Essa poeta era
agraciada por Deus com sonhos consoladores e iluminados como os profetas e os
patriarcas bíblicos. Ali experimentava a plenitude que sua vida de
favelada não lhe permitia tocar no cotidiano. "... Eu
durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vistido era
amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as
estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organizaram
um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco
luminoso. Quando despertei, pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num
espetáculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh´alma
dolorida. Ao Deus que me protege, envio os meus agradecimentos."
Que a doutora
Carolina, discípula da fome e do Deus verdadeiro, inspire todas as mulheres
para seguir vivas, enfrentando a realidade, lutando pela liberdade e
deleitando-nos com os sonhos deslumbrantes que o Deus da vida nos concede
generosamente.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e
autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.
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Maria Helena Guimarães Pereira
MHP Agente Literária - Assessoria
mhgpal@gmail.com
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